quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

A Mancha.

Eu não irei falar sobre flores; minhas veias estão abertas e delas
escorre o sangue; as sombras se desmancham nos campos onde as vacas dormem;
estas palavras são mal ditas na ponta de minha caneta; poderia estar agora correndo
em algum lugar aberto, deitado à costa de um cavalo, sentindo o galgar de suas
patas; o vento ondulando a mornidão da chuva que ameaça a cair das nuvens
grossas; por quantos anos esperei para que o arranjo de flores se desabrochasse
como uma coroa de louros em minha cabeça – porém, a primavera nunca veio;
tropeço amordaçado; as cortinas se insinuam na janela; púrpuro, incólume,
viçoso; nossos bosques não têm mais flores; nosso canto é uma mentira; quando
me olho no espelho eu posso me ver como um objeto falacioso; um objeto; não
passamos de algo extático; deixemos os livros de lado – que suas páginas
embolorem com o decorrer dos anos; que a curva do rio se arraste para margens
distantes do Atlântico; deixemos que a luz atravesse a escuridão através das
franjas do lustre; minha caneta estoura e a tinta azul escorre violenta e
quente; a primavera nunca veio – o verão não existe; atravessaremos sempre esse
mar de folhas secas que atapetam nossa passagem; viremos a página;
quando peguei no ônibus para N..., sentei-me ao lado de uma janela
ampla; a garoa parecia cortar o vidro em pequenas feridas agudas; porém, lá
havia uma mancha; uma mancha; detive o meu olhar para esta mancha; ela pareceu
crescer em forma, em tamanho, em cor, em brilho, em existência – a vida parece
mesmo com este eterno expandir, dilatar, essa ânsia de querer ultrapassar os
seus próprios limites – até que uma linha se rompe e tudo vaza para o nada;
quando aproximei mais o meu rosto daquela mancha cinzenta (devo dizer que ela
era cinza – será por que estava nublado?) ela simplesmente tornou-se pequena
novamente; aquela mulher gorda apenas espiava – dentro do seu imenso vestido de
flores, parecia um balão; seus seios saltavam como duas gelatinas engorduradas
e contritas; a gorda me espiava, sorrindo e piscando; olhava para mim com uma
curiosidade quase maternal – do que estou falando? – mas e a mancha?; peguei o
lenço do bolso e tentei limpar o vidro; mas a mancha era uma marca, forçamos a
vista para tentarmos olhar através dela; passei cuspe na ponta do dedo, mas não
adiantou; tirei um livro do bolso e as
palavras se entrelaçaram, formaram um nó cego e a mancha caiu sobre minhas
pálpebras;
curioso, mas é um lugar-comum; conforme olhamos e vemos a sua sombra
tornar-se mais consistente, afundamos mais na solidão; porém, quando o sol está
alto no céu, uma multidão parece assistir a tudo isso como um espetáculo – até
a noite cair e tudo esvair no esquecimento; não há o que dizer e não sei porque
escrevo sobre isto – mas vejo que atrás dessa mancha haverá uma marca que
jamais será apagada – logo, em essência, a mancha sempre continuará a existir –
mesmo que em sua forma inexistente; surpreendo-me como uma simples mancha pode
profanar o ritual de um silêncio, o crepitar de uma onda sobre o mar; basta
apenas abrirmos um livro, um romance qualquer, seja o autor russo ou nacional,
e repetidamente caímos no mesmo drama, a roda do círculo vicioso sempre a girar
e quase vemos as palavras narrando a mesma situação, o mesmo medo de sentir e
de ser apreendido por algo oculto, místico, cambaleante entre as curvas de uma
colina – ainda existe uma Montanha inabalável no horizonte que estremece a
retina de meus olhos úmidos...
Como a realidade pode ser
mitigável apenas pelo relance desencontrado de pontos coincidentes que jamais
se entrecruzarão entre si no momento em que se perderam em direções tão
opostas, caminhos tão divergentes? Acredito que deva existir outras formas
menos dramáticas de nos confrontarmos com situações como esta mas, seja como
for, nos depararemos com uma pétala de flor que se desgarrou da sépala e que
agora se enegrece morta dentro de um vaso, ou pela poeira que brilha na
superfície da estante de livros, ou... ou... parece que estamos sendo
importunados constantemente por um puxão qualquer – como se uma criança
atrevida sempre nos tivesse arrastando pelas mangas em terríveis safanões;
suspeito, porém, que a maioria de nós estamos preocupados em sermos
indiferentes a esses bruscos encontros com a sombra do outro; poderia eu fazer
diferente? – ah! mas Deus me perdoe por essa minha cegueira que despenca nas
pálpebras dos meus olhos como uma mão sútil que se fecha a punhos de aço – e é
assim, desavisadamente, que andamos entre vestidos esvoaçantes e carros
acelerados – entre casas e prédios arranha-céus; porque é desta forma que
levantamos a nossa visão entumecida de um estranho negror e enxergamos além da
margem do livro e vemos então... ; oh, mas espere: do que realmente eu ia
falar?
eu não irei cadenciar rimas; meus versos se borraram de tinta; já é
tarde demais – o metrô atravessou a estação furiosamente; resta apenas fumaças
e cinzas; parece que os segundos do relógio se desatinaram freneticamente num
urro dissonante; andaimes e fios de aço se desprenderam da parede e me ataram
numa prisão de concreto; mais do que loucura – eu grito; ninguém me ouvirá;
ninguém virá ao meu socorro; é por isso que emudeço; minha boca se cola à
parede; não quero rezar; ninguém ouvirá meu nome – sou inominável; homem sem
terra; sem lei, furto-me ao pedantismo; – sou um cínico canalha; não sei teu
nome e jamais saberá o meu; beijo tua face com a boca lambuzada de escarro;
quem sou eu afinal? não sei, não sei – não saberás; pouco me importa quem é
você: apenas ouça; assim daremos as nossas mãos; estou despido; nu, ando a céu
aberto; olhos me espiam, mas ninguém me vê; estamos unidos; estamos unidos;
Mais uma vez eu deixo esquecer o que era o assunto principal da
questão – se estou preocupado? realmente, não sei – vamos fingir sermos
indiferentes a essa conversa que se sucede – voltemos ao nosso lugar-comum de
cada dia; falemos daquele homem que há dias atrás se enforcou no meio da
madrugada; há aqueles que suspeitam que o caso não foi suicídio, mas sim
homicídio – pois a namorada deste pobre homem se encontrava no local do crime –
uma negra e, além do mais, pobre! – um absurdo; por que especular o que é
óbvio? mas sob qual ótica? – simples: pela cor negra que se desbota na pele da
moça; a cor da pele é um meio para a justificativa; mas qual é o fato em si
mesmo? e de repente falo apenas de uma negra – e o enforcado? já está enterrado mesmo, não há
nenhuma importância – deixemos a negra de lado, deixemos o defunto enterrado – devemos divagar sobre outras coisas: “também, uma negra com aquele cabelo, com
aqueles pés rachados” dizem as moças e logo o a história principal se torna
algo secundário; mas não é que agora eu não me lembro do que ia te dizer? é a
mancha, é a mancha! negra como a negra! quantas vezes precisarei me reunir
diante da janela, buscando a impalpável leveza das palavras, buscando o
frescor, a brandura de uma vida tenra – fragmento-me em mil pedaços e deixo-me
recolher em sombras mornas, formando um vitral descolorido no horizonte de uma
paisagem presa à minha lembrança; vejo as cores se movendo languidamente na
franja dos meus dedos; sentir um cataclisma me deslocando para outra realidade
que não pertence à carne, ao desejo – deixo-me sucumbir à esta mancha que
aparece na janela da qual passo a reunir gradativamente meus cacos – preciso eu
ajustar as minhas lentes? pois esta mancha é escuramente vítrea, etérea,
deslocada de qualquer existência em si mesma, de onde as ondas se quebram e
formam um arco perfeito de lágrimas espumantes; talvez seja uma nova cegueira,
um novo problema na minha vista – forço-a, esfrego minhas mãos aos meus olhos,
quero atravessar o meu campo de visão para tocar a mancha, mas ela é
impalpável; passo novamente o lenço no vidro da janela com esperança de
arrancar toda a sua sujeira, sua forma excêntrica se espargindo em todas as
direções, suas camadas grossas sobrepondo às mais finas, o sol não se esgueira
através de sua superfície e as estrelas se ocultam em sua sombra; prefiro
fingir, fechar os olhos para não ter que ver sua estupidez hirta na realidade –
fechemos as cortinas e ocultemos o que há do outro lado da janela; vamos ser
incoerentes ao ponto de sorrir e esquecer a torneira da pia de casa aberta –
creio que todos nós cometemos crimes imperdoáveis diariamente; mas
temos rido com histeria dos nossos atos; até chego a me perguntar se não estou
me enganando, que tudo não passa de uma tolice acreditar que somos essa massa
de sonâmbulos delinquentes; mas, seja como for, ainda esquecemos a torneira de
água aberta; esquecemos também de regar as plantas e também, o que é pior...
afinal, o que importa?
Por mais que seja lugar-comum, perco-me facilmente ao falar desta
mancha tingida em minha janela; ah! mas agora violado meu santuário, devo
refugiar-me a que espaço? procuro pessoas, pego o metrô, ando de ônibus, saio
caminhar nas ruas, de vez em quando eu pego telefone e ligo para alguém; vejo
um homem tocando violão e seus acordes são tão dissonantes que me enlevo numa
áurea atormentada numa onda cambaleante de aflição; inquieto-me; Ah, mas o que
fazer com o outro – esse monte de carne esponjosa se arrastando de um lado para
o outro – o que fazer com essa matéria insossa que eles nos entregam? Devo
fechar os olhos? porém, ainda podemos sentir o cheiro do putrefato, da podridão
que é a incerteza, da vaguidão de estar perdido em corredores escuros; suspeito
que tudo isso seja carne morta esfarelando a vida em poeira infértil – será a
mancha em sua forma plena? fossilizamos o que ainda nos resta! cavemos nossa
sepultura! vigiai – pois a mancha me devora;
parece que aquela mancha
cinzenta esta ainda borrando a visão de quem tenta enxergar através do vidro,
enquanto que o ônibus não interrompe sua viagem; cada letra de meu nome desliza
do seu invólucro e se desmancha no ar como um arco-íris; pra quê precisaria eu
de um nome?; meu nome é um número; este número é um segredo que nem eu mesmo
decifrarei; eu só sei cantar essa melodia desafinada que se choca com a parede
embolorada; eu sei o que sou – sei bem, aliás; no entanto, estou longe das
definições; no momento em que descobri o que sou me tornei um inválido; como um
daqueles que ficam largados nas avenidas e em frente de bares pedindo uma
esmola; esses humilhados – mas sou como eles; sento-me na sarjeta e neste
momento rifo-me como recompensa de não ser nada; aquele cego que sai do trem me
compreende: ele não me enxerga; quando estou com fome me alimento dos restos
dos meus sonhos; esse mundo anda a passos de elefante; não acompanho seu ritmo;
vou escrever uma carta; vou escrever um romance; antes, porém, devo me enforcar
num poste para que então eu sirva de aviso; que em minha lápide escrevam:
“Alguém que jamais falou sobre flores”.
Enquanto que a mancha – esta eu deixo para a eternidade...

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