quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

A cerejeira

Quando o vento pareceu vacilar; quando as ondas do mar se partiram nas
rochas; quando a baía pareceu estremecer em arrepio; quando o céu se dobrou em
manchas; quando os primeiros raios da noite banharam o silêncio; a paisagem se
avultou como um rosto sombrio, com sua margem cheirando acre, com os coqueiros
balouçando mansas; quando o farol trespassava a solidão com a força da sua
luminosidade incontida; quando das franjas das árvores uma poça se formava ao
chão e os vagalumes bailavam em vestidos transparentes; quando de repente um
grito pareceu nascer do mais tenro vagar do silêncio entre as fímbrias da
relva; aquela era uma terra habitada por sombras que se deitam já ao amanhecer;
o que era aquilo, Deus? um pássaro sincopando a noite; uma lanterna que se levanta
e o caminho se faz íngreme; há um vale a se adentrar; uma montanha imensa
cobrindo a ilha; uma mulher que corre em busca do lençol que escapou do varal;
o que estamos procurando, o que queremos saber na verdade, por que estamos aqui
e agora meu Deus eu já nem sei – assim ele indagava – deslizando na proa do
navio, tateando no escuro, sentido uma força oprimindo lhe o peito; por esta
tempestade que despencava da escuridão em seu irremediável fim para a
eternidade; oh! mas era como se ele tivesse sendo cada vez mais arrastado pela
correnteza incessante que corre célere do fluxo e refluxo do mar; mas é como se
essa torrente estivesse banhada de pétalas de rosas mortas que, ao longo do
caminho, foram sendo arrastadas da curva de um rio; até o momento os sinos se
dobram etéreos; a reverberação de um som inaudito carrega consigo toda a força
de um abalo sísmico; todas estrelas se partem em lamentos sibilantes – o que é
este gesto sensual, o que é este florescer e fenecer, saberemos sempre que
vivemos no limiar do prenúncio, que somos seres periclitantes numa corda bamba;
a morte é isto, é este esgar, é esta flecha atravessando a solidão e no entanto
estamos aqui, a morte é este entrelaçamento sexual no qual gritamos por júbilos
de prazer – a farrapos, com as nossas armas postas ao chão, o nosso estandarte
partido em mil pedaços; um imenso abismo se abre entre nós e sempre estamos
vacilando, fugindo, escapando, indomáveis como touros na arena, esse círculo
mágico que no momento em que tocamos se liquefaz e escorrega por entre nossos
dedos – este pedaço de carne que nos é rasgado, este animal feroz rastejando
faminto sobre a sua presa – estas garras que arranham a parede com a crueza de
um corvo – ah! mas tudo isso, tudo isso não passa de...;
mas eles não se ouviram, não se compreenderam, talvez a noite os
cegasse a tal ponto que o consolo fossem apenas de se manterem cegos ao
desencontro, inertes ao pulsar de um coração feroz, faminto, como mãos colhendo
ouro de uma mina; dentro da noite era como se houvesse a possibilidade da
morte, como se a tempestade embalasse todos os pesadelos e todas as sementes
que os uniam se espalhassem e se ramificassem em raízes profundas – como a
Natureza poderia ser estúpida: erguendo-se e se desfazendo em si mesma como o
próprio fim, edificando-se, nascendo de face com a dor, o espanto, o desamparo;
mesmo que se adentrando em túneis cada vez mais arenosos, fáceis de cederem a
um toque, a um olhar, mesmo que a amplitude de um abraço corrompesse a ordem
natural dos fatores, a Natureza era ignorante diante da morte – porém, haviam
ele e ela que não se contemplavam, mas cingiam-se entre os fios que a Lua tecia
de sua cabeleira;
mesmo que assim fosse: que as colinas da Grécia fossem suaves, mesmo
que de suas encostas o ardor de uma vegetação rala envolvesse o cume de uma
montanha como a majestosa capa de uma deusa helênica; porém, fosse como fosse,
era neste estado que ele se encontrava quando ancorou na Grécia, dias antes,
com as suas malas amarrotadas de roupas, com a mochila recheada de livros, um
mapa meio rasgado colado com uma fita adesiva, uma bússola rachada – porque, de
qualquer modo, todo andarilho está sempre abismando naquele precipício que nos
persegue incansavelmente, devemos construir uma ponte – ele se indagava mais e
mais, pois nunca haveria uma fórmula pronta, a inexatidão é assustadora, não
queria cometer relapsos ou enganos consigo mesmo – pois ainda teria muito o que
seguir;
pois era assim que ele caminhava – com a sua bota de cano alto, com
sua capa de chuva cobrindo-lhe o tronco, as mãos enluvadas por um couro já
surrado – aquele rosto desenhado pelo perigo; porém, ainda com os gestos presos
à uma ingenuidade infantil, como alguém que carrega flores mas ainda continua a
levar tapas na cara; oh! mas que não se assusta, que não se interrompe no meio
do caminho pois há ainda algo de maior dentro de si que o impele a seguir...
ah, talvez fosse o sonho, o devaneio, a mentira, a farsa, a tragédia, os tantos
romances que lera em vida, as músicas que ouvira; também, quando sente fome,
resolve amar e se dividir para tornar-se um – ai, saciam-no com pedras, com
urzes e urtigas - sem querer seu arranjo
de flores cai ao chão e com um tapa na cara e simplesmente sua face saliente se
transborda em cacos, em míseros fragmentos que o vento carrega consigo; não,
pensava ele, não, dizia constantemente, não, e se sentia um monossílabo ao
dizer uma palavra apenas mas que de alguma forma dentro dessas três letras
havia uma força de salvação – a negação era trazida com a morte, com um tiro na
testa, com o coração apodrecendo em cólicas de vômito, sentia-se febril, louco,
ardente, intenso, jorrando labaredas de uma chama incandescente, morta,
exaurida pelos instantes jamais realizados, pelos olhares que jamais foram
encontrados, pelas palavras e gestos que ele jamais ouviria – e o nunca mais se
perdia no tempo; era assim que ele se reencontrava – pois amando ele se
transformava e sua alma saia de seu corpo e apenas sobrevoava toda a realidade
que o circundava – desse modo seu corpo e espírito se reaviam: na exaustão;
então ele voltava a seu lugar-comum, aquilo que diriam ser a sua zona de
conforto e apenas observava da janela, com os olhos expectantes, pessoas
vagando em cada canto – e aquele passante, aquele homem escondido em sua blusa
de lã grossa, sempre ao pôr-do-sol passava sombrio diante de sua casa e ele
apenas observava, ainda se recuperando, ainda tentando buscar aquele estranho e
indefinível estado onde as palavras não viriam mais e a mansidão amainava suas
mágoas e sua fúria, o seu rancor pelos seus amores jamais retribuídos, as
pessoas são como sombras e delas nada sabemos – assim como são imprevisíveis ao
ponto de a odiarmos e amá-las precipitadamente, até que vem o dia vem e com o
Sol tudo se esvanece – era assim que se aceitava condolente; ainda assim, as
pessoas o olhariam com o canto dos olhos – ninguém jamais se entregaria com a
profundidade de escavar novos terrenos, de descobrir cidades submersas, em
encarar o prisma do amor através da solidão e de mãos calejadas;
um dia ele sonhou com uma árvore de cerejeira – era linda! – o campo
imenso de uma fazenda desconhecida, porém a relva musgosa, o céu cheirando a
cinzas de um incêndio, as nuvens turvas como gelo que se derrete, mas lá no
centro de tudo, como uma imensa estátua hirta em qualquer deserto, como um
imenso rio que se desalinha em direção a montanha, lá estava aquela estranha
árvore de cerejeira! – o seu tronco macilento e retorcido e no entanto, como
era bela a sua copa! com as suas flores imensas despencando cores róseas e
esbranquiçadas e seus frutos ainda por amadurecer – porém, uma névoa se
adensara, tudo tornara-se embaçado, mal o sol refletia e seus raios
desapareciam e tudo lentamente se transcorria num imenso silêncio, vazio,
solidão, cores neutras se enfumaçando na paisagem, um pássaro piou tristemente
em algum lugar – em outro mundo talvez – até que nunca mais, nunca mais, nunca
mais... o mundo gira, o mundo rodopia na
ponta dos pés, espera que a Música nunca cesse, que os músicos continuam a
marcar o tempo, a melodia, a delicadeza das plumas da Lua sobre todas as
coisas... a cerejeira também dança, também gira, também se ramifica pelo mundo
em grandes braçadas;
foi assim que um dia ele acordou, se vestiu, arrumou as malas e,
cansado, disse “vou para a Grécia”, queria ir a Grécia, lá havia uma
sensualidade que ele nunca adivinharia, lá haveria talvez a sua cerejeira –
quantos frutos ele colheria? o que ele queria mesmo? ah estava cansado, aflito
e – covarde! covarde! pois fugiria, pegaria a primeira estrada, iria pra
Grécia, por covardia! já estava tão resignado a dor que aceitava compassivo a
sua própria covardia – no fundo de tudo ele era infeliz a tal ponto de ter amor
e não saber dá-lo as pessoas que tanto queria – ele era aquela espécie de
pessoa que causava a morte – só amando, só pensando em amar... talvez desejasse
agora aquela cerejeira para que sob os seus pés pudesse ler um bom livro e
curtir consigo mesmo aqueles amores abandonados, macerados, mascarados e
pisados de até então; peguemos um mapa, tracemos a rota e vamos fazer nossa
lápide!;
já na Grécia encontrou uma aldeia, seria terra das cerejeiras? – por que
ela o deixara? – porém eles nunca se compreenderam – neles havia a linguagem
cercando-os como uma muralha – até que houve a indiferença – ela nunca daria
frutos de cerejeira – nem mesmo a sombra para refrescar a fronde – mas ali
estava aquela aldeia – parecia um engano, um desaviso, um erro, os pontos que
não se encontram e já não tem mais uma reta mas sim qualquer coisa – um traço –
até que a noite cai e tudo se parece um deserto; tudo fica mais frio e ele,
como um gesto involuntário, arruma a gola do sobretudo, quer se esconder mais
do que a noite pode ocultá-lo, sente sede e tem fome, mas a aldeia está
apagada, parecem fantasmas suas luzinhas anêmicas – como não se lembrar dos
olhos dela, aqueles olhos que ardiam ao mesmo tempo que se apagavam quando os
olhos dele a encontravam, era como se algo se quebrasse sem no entanto fazer
qualquer ruído, porém escuta-se ecos, lágrimas que refletem uma mancha escura,
apesar de tão cristalina, era assim que se repeliam e era assim que ela dizia o
seu não, não, não – nunca, nunca, nunca –
vagava como um forasteiro – sentia a fina poeira das ruas da aldeia
roçarem em suas botas sujas – tudo estava fechado, tudo parecia estar
entristecido por aqueles luzes de querosene, as pernas ardiam-lhe de cansaço –
suava e estava frio e a qualquer momento ele previa desabar desfalecido – as casinhas
da aldeia eram pintadas de cores variadas que no entanto já dava para perceber
que estavam desbotadas – as janelas eram impenetráveis, apenas as fracas luzes
das lâmpadas à querosene vasavam palidamente – sentia-se um cheiro de óleo e,
contudo, o que mais interessava a ele e que fazia-o decepcionar que haviam
árvores de todas as espécies, mas não havia a cerejeira – onde deveria procura-la?
em que terras distantes teria que percorrer para encontrar o seu ideal, para
encontrar onde repousar seu corpo cansado e permanecer assim – etéreo – pela eternidade?
a pequena aldeia se fazia aos pés de uma imensa montanha que, pela escuridão da
madrugada, era impossível enxergar sua superfície; onde estaria o fundo das
coisas, onde encontrar verdadeiramente a solidez, a forma, esta mágica frágil,
perene, revestida através de uma ilusão, de um sonho, de uma quimera, através
de uma flor de cerejeira, ele só sabia se indagar cada vez mais;
o dia seguinte nasceu como uma esperança; ele novamente pôs-se a
caminhar na aldeia; ouvia-se um coral arpejado em notas agudas de um piano meio
desafinado, os graves estremeciam as folhas das árvores, as pétalas das rosas
se dobravam, reverenciadas ao vento, a aldeia vazia se embaciava esgazeada,
sombras se deitavam rente ao céu e a terra e não havia ninguém – nem mesmo uma
marca de esperança, de um possível encontro, de querer desfrutar o sabor de uma
sombra numa tarde fresca – qual seria a época em que a cerejeira desabrocharia?
onde foi então que se deixou ceder a tal ponto de ganhar asas e querer
voar? desatinado, afeito a impaciência, tristemente cambaleando como um bêbado
maldito, encontrou uma rota dentro da montanha e quando se vira estava com o
coração selvagem, com a força da montanha a esmagar lhe pela sua existência,
sentia-se como um pássaro preso a ramagens de um arbusto; escalava cada vez
mais a encosta da montanha com a ânsia de conquistar o seu cume, pois nele
havia a fragilidade e no cume da montanha talvez encontrasse a tão sonhada
esperança de estabelecer um repouso para si, essa ânsia de querer sentir a
segurança através do que é tátil, suas imprecisões se perderiam para o sempre,
até que se esgotasse e ele mesmo fenecesse – ah! quantas vezes teria sempre que
recobrar a visão diante das palavras de Virgínia Woolf? “A morte era um desafio. A morte era uma tentativa de união ante a
impossibilidade de alcançar esse centro que nos escapa; o que nós é próximo se
afasta; todo entusiasmo desaparece; fica-se completamente só... Havia um
enlace, um abraço, na morte.”; mas é que no topo da montanha pode-se achar
a chave do segredo onde se possa desenterrar o enlace de nossos mistérios,
nossos artefatos, nossos laços que nos unem; e lá no topo da montanha, talvez
as sementes finalmente despertem dos seus sonos e nasçam, criem raízes e
atinjam o âmago de todas as coisas, solidifiquem-se como uma verdade
irrefutável que é a vida e todos se ajoelhem aos seus pés... mas, espere! quem sabe
não seja somente no cume de uma montanha que a árvore de cerejeira nasça,
somente lá é que podemos tocar na face da Lua, as estrelas, o Sol, a solidão
deixando sua marca – enquanto empurramos o nosso amor e deixamos rolar ladeira
abaixo;
no entanto, como numa visão, entre as brumas e as neblinas que se
engrossavam no topo da montanha, havia sim uma imensa árvore de cerejeira,
fornida das mais lindas flores que exalavam um aroma docemente ácido, plumoso,
macio; ele se ajoelhou diante de uma visão de Deus; a ele agora só teria amor
para dar porque o amor fervilhava dentro de si como lavas de um vulcão
violento; ele tocaria no que é sagrado e dentro dele nadaria até que chegasse a
inevitável hora da morte – o seu destino era esse, era se agarrar a uma árvore –
encontrar a solidão – devemos amar, mesmo que seja algo, mesmo que esse algo
não se mova, não se pode desistir, deve-se amar porque amor é questão de
salvação – e ele, como uma criança, subiu na árvore e dela colheu os seus
melhores frutos, deixou que a fruta explodisse na superfície de sua língua e
todo aquele gosto, aquele aroma violento, o arrastasse cada vez mais para
aquele torrente violenta de paixão – lembrou-se dos olhos, recordou-se também
das sombras que ele nunca pôde agarrar, da sua incapacidade de saber amar, de
ser amado – largou-se ao pé da árvore todo lambuzado e assim ficou –
- até que a eternidade o embalou...






quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

A Mancha.

Eu não irei falar sobre flores; minhas veias estão abertas e delas
escorre o sangue; as sombras se desmancham nos campos onde as vacas dormem;
estas palavras são mal ditas na ponta de minha caneta; poderia estar agora correndo
em algum lugar aberto, deitado à costa de um cavalo, sentindo o galgar de suas
patas; o vento ondulando a mornidão da chuva que ameaça a cair das nuvens
grossas; por quantos anos esperei para que o arranjo de flores se desabrochasse
como uma coroa de louros em minha cabeça – porém, a primavera nunca veio;
tropeço amordaçado; as cortinas se insinuam na janela; púrpuro, incólume,
viçoso; nossos bosques não têm mais flores; nosso canto é uma mentira; quando
me olho no espelho eu posso me ver como um objeto falacioso; um objeto; não
passamos de algo extático; deixemos os livros de lado – que suas páginas
embolorem com o decorrer dos anos; que a curva do rio se arraste para margens
distantes do Atlântico; deixemos que a luz atravesse a escuridão através das
franjas do lustre; minha caneta estoura e a tinta azul escorre violenta e
quente; a primavera nunca veio – o verão não existe; atravessaremos sempre esse
mar de folhas secas que atapetam nossa passagem; viremos a página;
quando peguei no ônibus para N..., sentei-me ao lado de uma janela
ampla; a garoa parecia cortar o vidro em pequenas feridas agudas; porém, lá
havia uma mancha; uma mancha; detive o meu olhar para esta mancha; ela pareceu
crescer em forma, em tamanho, em cor, em brilho, em existência – a vida parece
mesmo com este eterno expandir, dilatar, essa ânsia de querer ultrapassar os
seus próprios limites – até que uma linha se rompe e tudo vaza para o nada;
quando aproximei mais o meu rosto daquela mancha cinzenta (devo dizer que ela
era cinza – será por que estava nublado?) ela simplesmente tornou-se pequena
novamente; aquela mulher gorda apenas espiava – dentro do seu imenso vestido de
flores, parecia um balão; seus seios saltavam como duas gelatinas engorduradas
e contritas; a gorda me espiava, sorrindo e piscando; olhava para mim com uma
curiosidade quase maternal – do que estou falando? – mas e a mancha?; peguei o
lenço do bolso e tentei limpar o vidro; mas a mancha era uma marca, forçamos a
vista para tentarmos olhar através dela; passei cuspe na ponta do dedo, mas não
adiantou; tirei um livro do bolso e as
palavras se entrelaçaram, formaram um nó cego e a mancha caiu sobre minhas
pálpebras;
curioso, mas é um lugar-comum; conforme olhamos e vemos a sua sombra
tornar-se mais consistente, afundamos mais na solidão; porém, quando o sol está
alto no céu, uma multidão parece assistir a tudo isso como um espetáculo – até
a noite cair e tudo esvair no esquecimento; não há o que dizer e não sei porque
escrevo sobre isto – mas vejo que atrás dessa mancha haverá uma marca que
jamais será apagada – logo, em essência, a mancha sempre continuará a existir –
mesmo que em sua forma inexistente; surpreendo-me como uma simples mancha pode
profanar o ritual de um silêncio, o crepitar de uma onda sobre o mar; basta
apenas abrirmos um livro, um romance qualquer, seja o autor russo ou nacional,
e repetidamente caímos no mesmo drama, a roda do círculo vicioso sempre a girar
e quase vemos as palavras narrando a mesma situação, o mesmo medo de sentir e
de ser apreendido por algo oculto, místico, cambaleante entre as curvas de uma
colina – ainda existe uma Montanha inabalável no horizonte que estremece a
retina de meus olhos úmidos...
Como a realidade pode ser
mitigável apenas pelo relance desencontrado de pontos coincidentes que jamais
se entrecruzarão entre si no momento em que se perderam em direções tão
opostas, caminhos tão divergentes? Acredito que deva existir outras formas
menos dramáticas de nos confrontarmos com situações como esta mas, seja como
for, nos depararemos com uma pétala de flor que se desgarrou da sépala e que
agora se enegrece morta dentro de um vaso, ou pela poeira que brilha na
superfície da estante de livros, ou... ou... parece que estamos sendo
importunados constantemente por um puxão qualquer – como se uma criança
atrevida sempre nos tivesse arrastando pelas mangas em terríveis safanões;
suspeito, porém, que a maioria de nós estamos preocupados em sermos
indiferentes a esses bruscos encontros com a sombra do outro; poderia eu fazer
diferente? – ah! mas Deus me perdoe por essa minha cegueira que despenca nas
pálpebras dos meus olhos como uma mão sútil que se fecha a punhos de aço – e é
assim, desavisadamente, que andamos entre vestidos esvoaçantes e carros
acelerados – entre casas e prédios arranha-céus; porque é desta forma que
levantamos a nossa visão entumecida de um estranho negror e enxergamos além da
margem do livro e vemos então... ; oh, mas espere: do que realmente eu ia
falar?
eu não irei cadenciar rimas; meus versos se borraram de tinta; já é
tarde demais – o metrô atravessou a estação furiosamente; resta apenas fumaças
e cinzas; parece que os segundos do relógio se desatinaram freneticamente num
urro dissonante; andaimes e fios de aço se desprenderam da parede e me ataram
numa prisão de concreto; mais do que loucura – eu grito; ninguém me ouvirá;
ninguém virá ao meu socorro; é por isso que emudeço; minha boca se cola à
parede; não quero rezar; ninguém ouvirá meu nome – sou inominável; homem sem
terra; sem lei, furto-me ao pedantismo; – sou um cínico canalha; não sei teu
nome e jamais saberá o meu; beijo tua face com a boca lambuzada de escarro;
quem sou eu afinal? não sei, não sei – não saberás; pouco me importa quem é
você: apenas ouça; assim daremos as nossas mãos; estou despido; nu, ando a céu
aberto; olhos me espiam, mas ninguém me vê; estamos unidos; estamos unidos;
Mais uma vez eu deixo esquecer o que era o assunto principal da
questão – se estou preocupado? realmente, não sei – vamos fingir sermos
indiferentes a essa conversa que se sucede – voltemos ao nosso lugar-comum de
cada dia; falemos daquele homem que há dias atrás se enforcou no meio da
madrugada; há aqueles que suspeitam que o caso não foi suicídio, mas sim
homicídio – pois a namorada deste pobre homem se encontrava no local do crime –
uma negra e, além do mais, pobre! – um absurdo; por que especular o que é
óbvio? mas sob qual ótica? – simples: pela cor negra que se desbota na pele da
moça; a cor da pele é um meio para a justificativa; mas qual é o fato em si
mesmo? e de repente falo apenas de uma negra – e o enforcado? já está enterrado mesmo, não há
nenhuma importância – deixemos a negra de lado, deixemos o defunto enterrado – devemos divagar sobre outras coisas: “também, uma negra com aquele cabelo, com
aqueles pés rachados” dizem as moças e logo o a história principal se torna
algo secundário; mas não é que agora eu não me lembro do que ia te dizer? é a
mancha, é a mancha! negra como a negra! quantas vezes precisarei me reunir
diante da janela, buscando a impalpável leveza das palavras, buscando o
frescor, a brandura de uma vida tenra – fragmento-me em mil pedaços e deixo-me
recolher em sombras mornas, formando um vitral descolorido no horizonte de uma
paisagem presa à minha lembrança; vejo as cores se movendo languidamente na
franja dos meus dedos; sentir um cataclisma me deslocando para outra realidade
que não pertence à carne, ao desejo – deixo-me sucumbir à esta mancha que
aparece na janela da qual passo a reunir gradativamente meus cacos – preciso eu
ajustar as minhas lentes? pois esta mancha é escuramente vítrea, etérea,
deslocada de qualquer existência em si mesma, de onde as ondas se quebram e
formam um arco perfeito de lágrimas espumantes; talvez seja uma nova cegueira,
um novo problema na minha vista – forço-a, esfrego minhas mãos aos meus olhos,
quero atravessar o meu campo de visão para tocar a mancha, mas ela é
impalpável; passo novamente o lenço no vidro da janela com esperança de
arrancar toda a sua sujeira, sua forma excêntrica se espargindo em todas as
direções, suas camadas grossas sobrepondo às mais finas, o sol não se esgueira
através de sua superfície e as estrelas se ocultam em sua sombra; prefiro
fingir, fechar os olhos para não ter que ver sua estupidez hirta na realidade –
fechemos as cortinas e ocultemos o que há do outro lado da janela; vamos ser
incoerentes ao ponto de sorrir e esquecer a torneira da pia de casa aberta –
creio que todos nós cometemos crimes imperdoáveis diariamente; mas
temos rido com histeria dos nossos atos; até chego a me perguntar se não estou
me enganando, que tudo não passa de uma tolice acreditar que somos essa massa
de sonâmbulos delinquentes; mas, seja como for, ainda esquecemos a torneira de
água aberta; esquecemos também de regar as plantas e também, o que é pior...
afinal, o que importa?
Por mais que seja lugar-comum, perco-me facilmente ao falar desta
mancha tingida em minha janela; ah! mas agora violado meu santuário, devo
refugiar-me a que espaço? procuro pessoas, pego o metrô, ando de ônibus, saio
caminhar nas ruas, de vez em quando eu pego telefone e ligo para alguém; vejo
um homem tocando violão e seus acordes são tão dissonantes que me enlevo numa
áurea atormentada numa onda cambaleante de aflição; inquieto-me; Ah, mas o que
fazer com o outro – esse monte de carne esponjosa se arrastando de um lado para
o outro – o que fazer com essa matéria insossa que eles nos entregam? Devo
fechar os olhos? porém, ainda podemos sentir o cheiro do putrefato, da podridão
que é a incerteza, da vaguidão de estar perdido em corredores escuros; suspeito
que tudo isso seja carne morta esfarelando a vida em poeira infértil – será a
mancha em sua forma plena? fossilizamos o que ainda nos resta! cavemos nossa
sepultura! vigiai – pois a mancha me devora;
parece que aquela mancha
cinzenta esta ainda borrando a visão de quem tenta enxergar através do vidro,
enquanto que o ônibus não interrompe sua viagem; cada letra de meu nome desliza
do seu invólucro e se desmancha no ar como um arco-íris; pra quê precisaria eu
de um nome?; meu nome é um número; este número é um segredo que nem eu mesmo
decifrarei; eu só sei cantar essa melodia desafinada que se choca com a parede
embolorada; eu sei o que sou – sei bem, aliás; no entanto, estou longe das
definições; no momento em que descobri o que sou me tornei um inválido; como um
daqueles que ficam largados nas avenidas e em frente de bares pedindo uma
esmola; esses humilhados – mas sou como eles; sento-me na sarjeta e neste
momento rifo-me como recompensa de não ser nada; aquele cego que sai do trem me
compreende: ele não me enxerga; quando estou com fome me alimento dos restos
dos meus sonhos; esse mundo anda a passos de elefante; não acompanho seu ritmo;
vou escrever uma carta; vou escrever um romance; antes, porém, devo me enforcar
num poste para que então eu sirva de aviso; que em minha lápide escrevam:
“Alguém que jamais falou sobre flores”.
Enquanto que a mancha – esta eu deixo para a eternidade...

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