quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Dona Alice

Na rua onde eu moro, vizinha à minha casa, reside uma tiazinha muito simpática no qual a chamamos de "Dona Alice". Hoje eu vi dona Alice caminhando na rua. Lembrei-me de minha infância e de como eu adorava esta senhora. Apesar de manter a distância. Desde pequeno já se adivinhava em mim o meu modo de fugir das pessoas através de uma rudeza delicada no qual eu me acanhava. Marca que até hoje, se olharem em mim com uma lupa, perceberão que a cicatriz ainda continua viva.
Pois bem. Esta tiazinha muito simpática me cativava, mesmo que em raros momentos de contato, como uma avó. Sua casa era o próprio mistério, e minha ousadia maior era de espiá-la, sempre quieto, um pouco tímido, recolhido nas sombras das minhas curiosidades. Também me recordo de quando eu adoecia de gripe e minha mãe, em algumas vezes, recorria as suas "ervas santinhas" e me preparava um chazinho bom à beça. Num pulo eu ficava bom - hoje eu vejo que eu era uma criança faceira - e novamente ia vadiar. Até que eu me surpreendia com a dona Alice varrendo a frente da casa. Ou regando as flores.
Mas houve um dia em que Dona Alice foi embora. E a sua casa escureceu. Uma janela quebrada parecia mais um olho murcho vazando a escuridão. As flores já não cresciam. Não havia mais as suas "ervinhas milagrosas" quando eu adoecia. E os anos se passaram. Cresci. E, infelizmente, os mistérios de minha infância dissolveram-se no passado. Mesmo quando ela voltou, depois de alguns anos, eu já não sentia mais o fascínio. Em mim já não havia mais o delicado encanto que é o da compaixão. Afeição. O mundo é rude e com ele eu me habituei a ficar só.
Porém, hoje eu a vi através das rugas que talham seu rosto. Seus olhos caídos de uma tristeza velha, lágrimas que nunca foram apagadas do canto dos olhos. Subitamente senti a antiga emoção - aquela mão suave que se fecha no coração e que o aquece aos pouco - mas que não tem nome. Mas se sabe que é bom. Mas por parte dela não houve mais respostas. Também ela endureceu. Ou ela sempre fora triste? Talvez eu não tivesse esse mesmo olhar de antes que só agora eu pude ver sua tristeza profunda. A dona Alice de minha meninice é apenas uma foto amarelada. A dona Alice de hoje eu já não reconheço. Ela passa, recolhe-se para sua casa.
Quanto a mim, só me resta esta estranha sensação que se mistura com dor e alegria. O coração quente que é amornado por um aço frio de vez em quando. Não choro, mesmo porque não há motivo.
A isto tudo, eu chamo de Saudade.
Todo o começo é o fim. Assim como todo fim é o início. Mal termina um momento e já nascesse outro, cheio de mistérios e segredos. Cada minuto que termina no relógio reinicia outro. É perigoso, fatal. Tenho medo de estar sempre a beira da novidade.

Assim como a manhã que nasce, eu não sei do meu dia. Quantas horas ainda me restam? E eu já me perco no labirinto do tempo.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Segunda Carta a Joaquim

5 de Fevereiro.

Caro Joaquim:

Ah que bom que você compreende essa chuva que caí ao avesso. Essa chuva de gotas fatais que se lançam brutalmente e que me ferem com sofreguidão! E eu pergunto Joaquim, eu pergunto: de onde vem essa chuva? Por que tão leve e imprecisa? Então acho que já posso largar a tua mão: você me entende – e por isso também me aceita. Como nos velhos tempos! – Mas quanto eu ser infeliz, eu já te disse que é uma outra espécie de felicidade a minha que eu não sei dizer. Procurei o significado do que sinto em tudo que esteve em meu alcance, mas nada. Eu sou tão feliz como se todos os dias fosse primavera. E em dia de primavera eu também abro minha janela, sinto toda vida em respiração profunda em alegria áspera de um sopro. Esse sopro de vida que fecunda até mesmo o mais rijo coração de um homem que pára diante de si próprio e se cala pela própria grandeza de vida, e então logo desiste... da própria vida. Pois sim: em dia de primavera eu também me dou ao luxo de ir ao riozinho próximo de minha casa e com a mesma cobiça de uma criança entregue ao mundo, eu apenas contemplo em silêncio leve de cristal o murmurar ofegante de tal riozinho, onde os peixes tão pequeninos repousam. E é também em dias de primavera que, ao vento do anoitecer, eu abro meus braços em receptividade à vida. Sei que olhares fugazes me olham por de canto, mas não tenho o pudor de ir apenas vivendo ao meu modo. Quem nunca um dia teve o profundo desejo de gritar ao alto da colina? Aceitar a vida de braços abertos é a minha vingança ao grito que eu também desejei e nunca pude gritar. Sei: não posso aceitar a vida plenamente pelo apelo desesperado de quem quer sempre mais do que a vida (é que talvez no fundo de meu íntimo, o meu desejo quase implorante é de morte. Mas é que a morte é um ritual: uma iniciação a uma nova vida.). Mas o que me resta como o primeiro e único consolo é saber que se está vivendo, de algum modo ou de outro. E que é na própria liberdade da vida é que se pode viver sem ter o Medo – o medo de tocar no âmago, de tocar no escuro ou de apenas florescer nas tardes de verão. O meu próprio modo de vida é ir apenas vivendo. Como um sonâmbulo que apenas vai e vai...

Ah sim: também não posso esquecer que é nos dias de primavera que, quando abro a janela e sinto essa respiração suave que é a vida, posso sentir também a brisa densa mas fresca que tem aquele profundo segredo inatingível e que somente uma palavra pode lhe dar a sensação ou a lembrança do estigma desse segredo: felicidade.

Felicidade é o segredo mais inflexível da vida.

Lembra a ruído de segundos e segundos passando em lentidão de quem espera...

A vida é uma espera.

Entende?

P.S.: Por que não respondeu a minha pergunta se és feliz? Tem medo da definição!? Saiba: eu também tenho. Por isso eu não defino o que sinto ou aquilo que eu não sei, eu só dou pistas ou crio esboços – vagas possibilidades. O que eu preciso saber está bem fundo dentro de mim.

Aguardo uma resposta!

Primeira Carta a Joaquim

(Assim. Assim. Bem: 30 de Janeiro).

Meu grande amigo Joaquim:

Há quanto tempo não nos vemos hein? Por que não apareceu mais? Tem mesmo até fugido dos meus pensamentos – só agora – nesse momento em que escrevo – te resgato lá do fundo de mim mesmo. (Sim, lá daquele fundo bem fino que é o da imaginação. Respiro profundamente: é a minha inspiração, Joaquim!). Pois bem, pois bem. Mas agora, colocando os meus pensamentos em ordem, crio teu corpo, teus braços, teu rosto. Mas por que essa barba tão longa hein, Joaquim? Assim, quero te pontuar em vida. Ponto.

Bem Joaquim, já que há tempos que não me escreve – e nem eu te escrevo – então é hora de colocarmos a conversa em dia. Então. Mas sinceramente, não tenho o que te contar – aliás, não sei por que te escrevo. E por que tenho a nítida (quase até visual) impressão de que tenho muito que falar? Bem, bem, bem... tentarei alguma coisa. Devo dizer que aqui não chove. Mas por que alguma coisa estaca tão dura e cortante dentro de mim? Até parece chuva... então eu devo-lhe dizer que do lado de fora está tudo bem. Do lado de dentro (me refiro ao meu lado de dentro) está chovendo. Mas é uma chuva calminha meu amigo – por favor, quando vier me visitar não tenho medo, sei que ela logo passa. Sei, você deve estar se perguntando, desde quando chove? Respondo: não sei. Há algum tempo estou fora de mim, ausente, numa espécie de viagem. Mas viagem mesmo não é – está mais para passeio. É que, Joaquim, eu estou tão cansado! A solidão às vezes é tão forte e densa como uma onda e que simplesmente me derruba como pessoa. Eu fico tão miudinho... – sabe, o que eu preciso mesmo é da sua mão amiga. Por isso, agora nesse final triste de tarde, eu invento a sua mão e me agarro com desespero a ela. Meu último subterfúgio. Para não cair inteiramente no abismo em que me encontro. Ah Joaquim, sinto sua falta! Por que não vem logo? As coisas ficam mais difíceis por palavras.

Choveu agora há pouco. Horário de verão, é quase oito da noite. E olha que lindo: o sol se pondo! As nuvens tão grossas encimando o ar, mas o sol... e tudo está coberto pelo tênue esgarçar laranja do pôr do sol. Pois é meu caro Joaquim, e eu aqui inquieto. Agora, o arco-íris. Se quiser, pode rir de mim. Eu não ligo, mas eu quero isso: eu quero o segredo do fim do arco-íris desmanchando-se em lágrimas das sete cores para que eu pinte um quadro tão real que ninguém acreditará vendo com esses olhos tão humanos. Será preciso sonhar para vê-lo. Não ria. Assim como agora onde em mim eu sinto as vibrações de cores fortes. Quero pintar em palavras a cor do vermelho misturando-se ao roxo num grito de desespero como um animal se debatendo em agonia. Estou sendo mal? Ou somente insensível? Como posso sentir dentro de mim essas coisas tão agudas e ásperas pingando de cima pra baixo as cores que apelam por vida? Pois é Joaquim, veja o quanto estou sofrendo... e ainda seguro firmemente na sua mão tão imaginária quanto ao isso que te escrevo. Não solte, continue a me segurar em amparo porque eu estou só e preciso de sua mão. E seu me virar de ponta cabeça, a coisa vai pingar de baixo pra cima!

Joaquim. Eu sei, nesse momento em que te escrevo eu estou um pouco triste – as minhas lágrimas se escondem atrás de minhas pálpebras. E eu não tenho medo e digo: eu sou feliz! (não ria.) Mas eu sei que essa minha alegria é daquela que dói quase que em tristeza. Mas é assim. Devo sorrir agora? Afinal, Joaquim, você é feliz? Desconheço sua felicidade. Parece até que às vezes minha felicidade é um acaso. Não fatalidade. Não aquela sensação de força planejada. Ah como eu estou sendo difícil. Não é mesmo?

Então por enquanto é isso Joaquim. Não tenho mais nada a dizer. Escrever agora foi tão bom! Sinto um alívio de um sopro. Me senti vivo. E sei que não pararei por aqui. Há tanta coisa que eu não entendo e que preciso compartilhar com alguém. Mesmo que de modo incompreensível. Mas é que as coisas são assim mesmo. Escrever agora tão subitamente teve o valor e o encanto de um mistério enevoado em cinzas. Se meu momento de insegurança é por não dizer nada, então eu quero escrever e dizer sempre. Mesmo que nem eu entenda. Sim?

Aguardo notícias suas com o coração impaciente viu Joaquim?

Um grande abraço, ao tamanho de meu amor e saudades por ti!

Meu querido,

Percebi que no meu longo dia de hoje alguma coisa me incomodava. Eu, de algum modo, me desbotava levemente, como quando se chove e o vidro se embaça e tudo lá fora fica cinza. Eu também fiquei assim hoje, um pouco cinzento demais que as borboletas nem vieram me visitar. E no meu cansaço, fechei meus ouvidos e fiz-me de cego. Pobre de mim que hoje nem mesmo amei e não fui amado; por uns instantes eu congelei a cena que é minha vida e os ponteiros do relógio desataram-se em linhas imaginárias. Só me resta cozer os pontos de minhas feridas abertas

Ele fixara seus olhos que esgazeavam no espaço vazio da eternidade em momentos nus escorrendo pelo relógio sibilante como o vento correndo pela campina. Passos delicados soando entre o céu impetuosamente esmaecido e, no entanto eu o via em seu mais absoluto silêncio dentro de um próprio silêncio cru que pingos prateados dos segundos tombavam vagarosamente entre um instante e outro. Era o estado mais profundo da realidade em que podia se encontrar, talvez. Porém, eu o olhava atento, como se nele houvesse a verdade escondida atrás de suas expressões faciais sérias, naqueles olhos levemente amendoados estrábicos oblíquos que se dissolviam através de um centro sólido e invisível – ai meu Pai! – e eu devo dizer o quê afinal?

Levantei meu olhar timidamente, escondendo a minha ousadia de ter a coragem de ao menos imagina-lo – deduzi-lo: em que pensa afinal? – e também de vigiá-lo em seu momento próprio – a testa enrugada, os olhos castanhamente vazios, ai de mim meu Pai! De través, olhei-o. Ah eu que preciso tanto de você, por favor, não me abandone. Ah eu tão frágil que sou que preciso urgentemente de sua mão agora, por favor, não me abandone nunca... – e com uma das mãos, ele brincava com a caneta. O rosto pálido, a boca seca. O coração palpitando ferozmente, quase-quase sempre no limiar, a porta da saída aberta na escuridão e ele quase-quase, meu Deus! Dá-me a tua mão porque preciso dela. No que pensa afinal? Talvez na noite de estrelas pálidas alinhando-se no gélido céu noturno. Em horas simplesmente vagas. Por que tão inconquistável como a bandeira no alto de um mastro? Ai meu Deus, que ele nunca me abandone...

No final, com as minhas mãos eu seguro a tua. Olho fixamente naqueles olhos nus e cansados, pálidos e aflitos. Que espécie de alegria era aquela?

Fui embora pensando em céu e terra. Noite e estrelas.

A vaguidão de Deus.

Tendo pois tal esperança, usamos de

Muita ousadia no falar. – II Cor. 3:12.

No princípio era o verbo. Era a palavra de Deus – e Deus era todo o mundo e, também a palavra. A carne faminta. E da carne, o ser. O humano. Porém, antes do verbo, o átomo. E depois, mais e mais átomos unindo-se até surgir então uma molécula. E dessa molécula, toda a pré-história de uma história. E dessa história se seguiria uma grande música estonteante e de uma bravura que há tudo isso até hoje os homens temem. Castelos edificados – grandes muralhas construídas através dos séculos. Mas os homens ficaram, em sua maioria, do lado de fora, apenas contemplando aquilo que eles edificaram.

Mas afinal, o que eu quero dizer a tudo isso?

Que os homens são tolos diante de sua própria grandeza. Assombram-se facilmente por aquilo que fazem e por isso mesmo tornam-se arrogantes. Mas ainda, mesmo que seja para alguns, há aquele fiapo maltrapilhado a que eu chamo de esperança. Creio que a esperança seja o verbo de Deus. E talvez seja a pré-história do amor. Esperança é aquilo que nasceu na grande explosão e que impulsionou a calha do tempo. Sim: a esperança.

Creio nessa esperança úmida e verde que nasce no coração humano e que se desprende, muitas vezes, na derrota. Mas ainda assim: esperança é um estigma cravado na pele.

Imaginariamente vou cosendo em pontos cegos pequenos fragmentos de memórias e inspiração nascidas não-se-sabe-de-onde. Do ar, talvez. Ou não. Mas afinal, por trás de meus sonhos e desejos sempre há a esperança.

Basta acreditar nela. Esperança é um sopro de vida.

Esperança é minha maneira de aceitar a vida.

A crônica da última hora I

Só pra pontuar: Mercúrio e Marte estão em guerra num céu que eu não vejo. É o que diz o horóscopo de hoje. É por isso que choveu o dia inteiro!? As mulheres de Marte já choram pelos seus filhos já mortos, com seus olhos esbugalhados e transparentes. Através desses olhos mórbidos, é possível enxergar um futuro que nunca irá existir. Então elas choram. Há outras mulheres Marcianas que também choram desesperadamente seus amores que nunca mais voltarão. Restará-lhes as noites de solidão - a cama grande demais, uma mesa grande demais, duas xícaras de café na mesa, enquanto o aroma do café vai se apagando. Sentem o cheiro de rosas no ar - um cheiro de jasmim, lírios brancos, essas mulheres marcianas que nunca jamais saberão amar de novo. Sentimos seus lamentos.
Assim como as Mercurianas, por que não?
As mais velhas, tão experientes de vida, essas choram silenciosamente, recolhidas em suas próprias sombras. A morte de alguma forma vem. Estão habituadas. Assim como esperam a própria morte. A morte que se dá no sangue. Rezam um pouco, rezam por rezar; rezam por terem fé.
Os homens também choram. Esses que empunham suas armas e derramam sangue na busca de uma vitória que desconhecem. Esses também choram. Os homens. Choram baixo, entre os destroços de lembranças felizes. O passado. É assim. Choram manso.
É por isso que chove, meu Deus. É por isso que cai essa chuva fininha, fria, que bate na veneziana da minha janela insistentemente numa melancolia que eu pressinto num arrepio.
Há luta demais, estamos cansados da luta. Eles também cansam.
E suas lágrimas tentam lavar o sangue sujo de chão que só o tempo pode apagar.

A VIAGEM

Dez horas. De manhã. A Estação movimentada. O trem dera o primeiro sinal anunciando que em breve iria partir. Antes de embarcar, porém, olhou ao redor. Viu algumas pessoas se despedindo uma das outras. Tristes. Felizes. E ele, de quem iria se despedir? “Adeus”, queria dizer para as coisas que o rodeavam, mas não podia. As coisas eram incomunicáveis. “Adeus”, tentou insistente. Esperou inutilmente – não houve resposta. Deu o último trago no cigarro e logo o jogou ao chão. Amassou-o com a ponta do pé. Mais uma vez o trem apitara – finalmente pegou as malas e embarcou.

Ajeitou-se no assento da cabine e, num suspiro de meia satisfação, encostou a testa no vidro da janela e pôs-se a contemplar deliberadamente a paisagem. As montanhas ora se erguiam agudas e estúpidas ora se desmanchavam num campo cerrado e úmido. As casinhas distantes passavam rápidas, enquanto o trem trepidava insistente. Assim como seus pensamentos, vacilando de repente na incerteza, no medo. No passado. Como num livro envelhecido onde as palavras já estão quase apagadas. Nunca mais!, pensou. Nunca mais voltar... eu fujo. Fechou os olhos. Eu fujo...

Acendeu um cigarro. Não queria pensar em mais nada. Os campos distantes onde as árvores fremiam solitárias; o vento frio arrastando o tempo. O silêncio agitando-se nos trilhos por onde o trem passava. Os ferros retorcidos. A fumaça preta tomando rumo contrário ao caminho seguido. Seria a impressão? A lembrança? Pois de algum vagão fazia música. Uma música de harmonia eriçada, sombria e vagarosa, em pequenas sucessões a pianíssimo. É Bach. De repente eu me apago, o palco fica escuro e vazio, as cortinas se fecham. Fico misterioso – escuto Bach e agora sou o próprio mistério. Enquanto vou fugindo com mágoa, sem ter a certeza da direção certa... deu às últimas tragadas no cigarro.

Apoiou as mãos no colo. Olhou o céu e percebeu que chovia. O vidro embaçava-se de um vapor transparente, gelado. A paisagem do lado de fora ofuscou-se, apenas um borrão cinza pincelado com brusquidão pelo trem em movimento. Ele continuava a olhar àquelas imagens neutras, o dia transformando-se em noite. Olhava. Pensava. O tempo passava. A solidão se fazendo presente. Como um buraco – uma ferida dolorida. Até que naquele reflexo escuro da paisagem em movimento misturou-se àquele rosto conhecido, familiar – aqueles olhos cândidos, suave, transparente. O reflexo confundindo-se à ilusão, tranqüilo mas irreconhecível. Anônimo. Como se escreve uma carta e não se compreende seu sentido. Palavras confusas e sem nexo. Infamiliar de repente. Mesmo que não fosse reflexo, mas realidade – a lembrança fundindo-se com a realidade – ele não havia jamais de reconhecer àqueles traços cujos longos anos ele conhecia-os bem e o amara – ah sim, amara! Amara porque não havia outro modo de aceitar a vastidão que é a gratidão do que senão amar. Mesmo sendo uma linguagem estranha, mas ele amava. E para se compreenderem nesse amor perigoso, ele só sabia mesmo era amar. Porém, antes mesmo de partir, o outro atravessara a noite escura num bonde escuro. Sem se despedirem, ele foi embora. Ficou esperando longas horas arrastadas, mas ele não voltou. Então virou o rosto ofendido, como um pássaro ferido. Com a ponta do dedo tirou do canto dos olhos uma lágrima que se perdia. Um barquinho boiando melancolicamente pelas águas fundas, arrastando-se levemente até o negro horizonte. Depois nunca mais... como uma madrugada sem luar. Até que o imponderável aproximava-se como uma estrela nova – e aproximava-o das imagens silenciosas que, como fantasmas, permaneciam distantes. Flutuando pálidos. A saudade.

Mas por que me deixaste assim? refletia. Pois me deixastes desamparado, com uma faca atravessada no peito. Eu, que fazia da tua imagem à minha semelhança; do teu sorrio eu fazia a minha felicidade; os teus olhos turvos mas sem lágrimas... e os meus? e agora? Já não há mais sorriso nem dor. No vazio ficou a ausência. Sou uma lacuna em face da verdade. E minha verdade máxima era a vida. Era a tua vida. Olhávamo-nos como cegos; endurecidos. Até que desabrochávamos e nos uníamos em comunhão perfeita. Compreendíamo-nos. Uma palavra tua e as coisas faziam sentido.

Lembro-me de ti em teus momentos sérios, de perplexidade violenta. Teus olhos enviesavam-se esgazeados, irrefletidos. Tua meditação era secreta, profunda. Até que se aproximava com lentidão, como um cachorro abanando o rabo, e tuas palavras saíam sufocadas de um grito desesperado. Mas é que teus olhos fugiam dos meus. Pois eu também temia-os e com a coragem de quem ama é que eu te encarava e finalmente tirávamos nossas máscaras, fadados de nossos disfarces. E na nossa crueza, reconhecíamo-nos.

Mas é que por instantes teus olhos pressentiam minha angústia maior que é a de quem possui mas não sabe o que fazer com aquilo que se tem. Eu, por não saber o que fazer do meu amor e felicidade, entristecia-me friamente. O desânimo mortificava-me. E no teu amparo, eu me confortava. Eu era, pois. E havia aleluia em ser. Aleluia. Eu, que precisava da tua fé por não possuí-la; eu que precisava de tua piedade. Até que esta tua piedade por mim converteu-se numa fria repulsa e, a farrapos, abandonei o que havia de mais vivo em mim. O bonde. O bonde cruzou as névoas da madrugada e tu, sem saudade, me abandonaste. E então nunca mais...

Lentamente o trem estacionou na plataforma da Estação. Desceu sem amparo, com uma ferida no peito. Uma leve tontura o abateu. A solidão. O frio enlevando o corpo. O que iria fazer de si? Não sabia. De longe, no alto de um muro, viu um gato preto que, num pulo macio, saltou até o chão molhado. Lambeu as patas. E foi embora. A ele também faltava dar “o pulo”. Atravessar o abismo. E com a cabeça erguida, atravessar a escuridão. Mas à noite, porém, apagaria num sopro a flama do passado.

ENTÃO, ADEUS!

Seus ombros esbarraram-se entre a multidão que se encontrava aglomerada. E num relance de olhar eles se reconheceram, eles que há tempos encontravam-se perdidos, tempos antigos que revitalizou a lembrança já perdida numa carícia quente. E ali, no meio daquelas pessoas tão distantes à realidade olharam-se fixamente, com um brilho sem espanto e sem glória, límpido, brilhantes como um farol a acenar cheio de saudades e mágoas. A primeiro momento, a moça jogou-se aos seus braços num forte abraço, esquecida de que entre eles havia um passado agora materializado em vagas lembranças, como de sonhos recortados em vitral pelas luzes e sombras da imaginação. Ela pôde sentir a mão grossa do homem afagar-lhe seus cabelos, passando suavemente seus dedos frios pela nuca com doçura. A ele, a dor de revê-la tão subitamente após anos era como se uma faca encostada em seu coração estivesse prestes a cortar-lhe friamente. Até que pressentiu que naquele momento havia uma ameaça de perigo eminente. No cruzamento, os carros que buzinavam paravam. O mundo ao redor congelava-se, virava às avessas, tudo desbotando em cinzas, um silêncio pressentido insuflando-se nos ruído dos passos. O tempo decorria serenamente. Até que de repente de dentro da moça alguma coisa agitou-se bruscamente, saiu do conforto dos braços do homem e novamente se encaravam. Porém, já não havia aquela paz tranqüila e transparente, feito de uma planície sem ventos, onde do céu as nuvens brancas eram como bandeiras imobilizadas no mastro. Nela já não havia a qualidade cristalina anterior no qual se podiam ver seus seixos transparentes. Dois olhos debatendo-se com outro dois olhos – a imperfeita paz. A respiração da moça parara com um grito lancinante. Lembrou-se do passado – como pegar um caderno antigo, as letras miúdas esparramadas em cada linha em tinta preta, páginas borradas pelo tempo, condenadas a uma sentença perigosa. Cada vez mais um nó difícil desatava, uma corda que prendia ambos às suas dores e solidão. Ela fechou os olhos para buscar o amparo que ele já não oferecia. Eles eram águas fluídas de um mesmo leito, caminhos já prontos numa mesma direção, a essência de ambos atraídos como duas metades perfeitas ao mesmo pólo inteiriço, uniforme. Não sabia que era apenas um esboço mal-traçado. Mas havia o perigo de tocar no passado, então ela abriu os olhos cheios de lágrimas. E a ele só restava aquele brusco desassossego que se transformava lentamente numa agonia – tinhas duas mãos e mesmo assim era incapaz de atravessar a noite. Tinha uma boca, mas de seus lábios era impossível dizer palavras brilhantes. “Melhor assim” pensou. Mas os olhos da moça gritavam desesperadamente em súplica. Mas percebeu que o homem, naquele seu branco silêncio, havia um negro diluído na claridade impassível de sua piedade. Piedade – nem a isso a ambos recorriam, com medo de que a piedade seja demais. Mas no final: os sinos solenemente badalavam, os carros buzinavam no cruzamento, as pessoas ao redor moviam-se com pressa. Com a ponta dos dedos, ela enxugou as lágrimas profundas, como a areia brilhante da praia. Ondas do mar em espumas brancas, a maré cobrindo suas mágoas para o fundo de si – e ele virou as costas sem dizer ao menos um Adeus. Ela via-o dissolver-se entre a multidão, já distante de si, de sua realidade, de seus sonhos. Percebeu seus ombros largos lapidados pelo tempo. Uma tinta negra borrou as páginas do caderno velho. Virou à costa também, quase feliz, quase triste. Sozinha. E com a voz calma e baixa, entre os dentes, num sopro sem de ternura e sem mágoa, disse: “Então, adeus!”

Eu olho no relógio que me diz as horas e marca que por enquanto estou vivo. Isso não é uma graça!? Saber que está vivo.

É que de repente nos esquecemos que cada minuto pode ser fatal. Viver é uma fatalidade que eu não esperava. A maioria das pessoas está cega: ligaram o "automático" e agora vivem como pequenos seres autômatos em busca do prazer. Seria trágico sempre lembrar da morte a cada segundo que se escorre nos ponteiros do relógio. Mas há uma verdade cruel em tudo isso.

Por que sempre passamos a dar valor a cada coisa quando estamos prestes a perdê-las!? Acho que temos esquecido, sobretudo, de amar. Nossa vida está se resumindo na busca ao prazer. E só. Ponto final.

E agora?

Uma criança chora em algum lugar. Um homem qualquer está sentado no banco de uma praça, enquanto a solidão vai lapidando suavemente as cores do silêncio. A maioria sente-se esmagada pela infelicidade - lembram-se de repente de como é trágico existir.

Onde está a vida afinal?
Não sei.
Mas sei que ela existe. Eu sei que ela é uma chama mansa que queima dentro de nós; um pequeno lume hesitando numa vela, prestes a apagar. Esperando. Esperando...
A vida é uma longa espera.

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