Dez horas. De manhã. A Estação movimentada. O trem dera o primeiro sinal anunciando que em breve iria partir. Antes de embarcar, porém, olhou ao redor. Viu algumas pessoas se despedindo uma das outras. Tristes. Felizes. E ele, de quem iria se despedir? “Adeus”, queria dizer para as coisas que o rodeavam, mas não podia. As coisas eram incomunicáveis. “Adeus”, tentou insistente. Esperou inutilmente – não houve resposta. Deu o último trago no cigarro e logo o jogou ao chão. Amassou-o com a ponta do pé. Mais uma vez o trem apitara – finalmente pegou as malas e embarcou.
Ajeitou-se no assento da cabine e, num suspiro de meia satisfação, encostou a testa no vidro da janela e pôs-se a contemplar deliberadamente a paisagem. As montanhas ora se erguiam agudas e estúpidas ora se desmanchavam num campo cerrado e úmido. As casinhas distantes passavam rápidas, enquanto o trem trepidava insistente. Assim como seus pensamentos, vacilando de repente na incerteza, no medo. No passado. Como num livro envelhecido onde as palavras já estão quase apagadas. Nunca mais!, pensou. Nunca mais voltar... eu fujo. Fechou os olhos. Eu fujo...
Acendeu um cigarro. Não queria pensar em mais nada. Os campos distantes onde as árvores fremiam solitárias; o vento frio arrastando o tempo. O silêncio agitando-se nos trilhos por onde o trem passava. Os ferros retorcidos. A fumaça preta tomando rumo contrário ao caminho seguido. Seria a impressão? A lembrança? Pois de algum vagão fazia música. Uma música de harmonia eriçada, sombria e vagarosa, em pequenas sucessões a pianíssimo. É Bach. De repente eu me apago, o palco fica escuro e vazio, as cortinas se fecham. Fico misterioso – escuto Bach e agora sou o próprio mistério. Enquanto vou fugindo com mágoa, sem ter a certeza da direção certa... deu às últimas tragadas no cigarro.
Apoiou as mãos no colo. Olhou o céu e percebeu que chovia. O vidro embaçava-se de um vapor transparente, gelado. A paisagem do lado de fora ofuscou-se, apenas um borrão cinza pincelado com brusquidão pelo trem
Mas por que me deixaste assim? refletia. Pois me deixastes desamparado, com uma faca atravessada no peito. Eu, que fazia da tua imagem à minha semelhança; do teu sorrio eu fazia a minha felicidade; os teus olhos turvos mas sem lágrimas... e os meus? e agora? Já não há mais sorriso nem dor. No vazio ficou a ausência. Sou uma lacuna em face da verdade. E minha verdade máxima era a vida. Era a tua vida. Olhávamo-nos como cegos; endurecidos. Até que desabrochávamos e nos uníamos em comunhão perfeita. Compreendíamo-nos. Uma palavra tua e as coisas faziam sentido.
Lembro-me de ti em teus momentos sérios, de perplexidade violenta. Teus olhos enviesavam-se esgazeados, irrefletidos. Tua meditação era secreta, profunda. Até que se aproximava com lentidão, como um cachorro abanando o rabo, e tuas palavras saíam sufocadas de um grito desesperado. Mas é que teus olhos fugiam dos meus. Pois eu também temia-os e com a coragem de quem ama é que eu te encarava e finalmente tirávamos nossas máscaras, fadados de nossos disfarces. E na nossa crueza, reconhecíamo-nos.
Mas é que por instantes teus olhos pressentiam minha angústia maior que é a de quem possui mas não sabe o que fazer com aquilo que se tem. Eu, por não saber o que fazer do meu amor e felicidade, entristecia-me friamente. O desânimo mortificava-me. E no teu amparo, eu me confortava. Eu era, pois. E havia aleluia
Lentamente o trem estacionou na plataforma da Estação. Desceu sem amparo, com uma ferida no peito. Uma leve tontura o abateu. A solidão. O frio enlevando o corpo. O que iria fazer de si? Não sabia. De longe, no alto de um muro, viu um gato preto que, num pulo macio, saltou até o chão molhado. Lambeu as patas. E foi embora. A ele também faltava dar “o pulo”. Atravessar o abismo. E com a cabeça erguida, atravessar a escuridão. Mas à noite, porém, apagaria num sopro a flama do passado.
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