quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

A VIAGEM

Dez horas. De manhã. A Estação movimentada. O trem dera o primeiro sinal anunciando que em breve iria partir. Antes de embarcar, porém, olhou ao redor. Viu algumas pessoas se despedindo uma das outras. Tristes. Felizes. E ele, de quem iria se despedir? “Adeus”, queria dizer para as coisas que o rodeavam, mas não podia. As coisas eram incomunicáveis. “Adeus”, tentou insistente. Esperou inutilmente – não houve resposta. Deu o último trago no cigarro e logo o jogou ao chão. Amassou-o com a ponta do pé. Mais uma vez o trem apitara – finalmente pegou as malas e embarcou.

Ajeitou-se no assento da cabine e, num suspiro de meia satisfação, encostou a testa no vidro da janela e pôs-se a contemplar deliberadamente a paisagem. As montanhas ora se erguiam agudas e estúpidas ora se desmanchavam num campo cerrado e úmido. As casinhas distantes passavam rápidas, enquanto o trem trepidava insistente. Assim como seus pensamentos, vacilando de repente na incerteza, no medo. No passado. Como num livro envelhecido onde as palavras já estão quase apagadas. Nunca mais!, pensou. Nunca mais voltar... eu fujo. Fechou os olhos. Eu fujo...

Acendeu um cigarro. Não queria pensar em mais nada. Os campos distantes onde as árvores fremiam solitárias; o vento frio arrastando o tempo. O silêncio agitando-se nos trilhos por onde o trem passava. Os ferros retorcidos. A fumaça preta tomando rumo contrário ao caminho seguido. Seria a impressão? A lembrança? Pois de algum vagão fazia música. Uma música de harmonia eriçada, sombria e vagarosa, em pequenas sucessões a pianíssimo. É Bach. De repente eu me apago, o palco fica escuro e vazio, as cortinas se fecham. Fico misterioso – escuto Bach e agora sou o próprio mistério. Enquanto vou fugindo com mágoa, sem ter a certeza da direção certa... deu às últimas tragadas no cigarro.

Apoiou as mãos no colo. Olhou o céu e percebeu que chovia. O vidro embaçava-se de um vapor transparente, gelado. A paisagem do lado de fora ofuscou-se, apenas um borrão cinza pincelado com brusquidão pelo trem em movimento. Ele continuava a olhar àquelas imagens neutras, o dia transformando-se em noite. Olhava. Pensava. O tempo passava. A solidão se fazendo presente. Como um buraco – uma ferida dolorida. Até que naquele reflexo escuro da paisagem em movimento misturou-se àquele rosto conhecido, familiar – aqueles olhos cândidos, suave, transparente. O reflexo confundindo-se à ilusão, tranqüilo mas irreconhecível. Anônimo. Como se escreve uma carta e não se compreende seu sentido. Palavras confusas e sem nexo. Infamiliar de repente. Mesmo que não fosse reflexo, mas realidade – a lembrança fundindo-se com a realidade – ele não havia jamais de reconhecer àqueles traços cujos longos anos ele conhecia-os bem e o amara – ah sim, amara! Amara porque não havia outro modo de aceitar a vastidão que é a gratidão do que senão amar. Mesmo sendo uma linguagem estranha, mas ele amava. E para se compreenderem nesse amor perigoso, ele só sabia mesmo era amar. Porém, antes mesmo de partir, o outro atravessara a noite escura num bonde escuro. Sem se despedirem, ele foi embora. Ficou esperando longas horas arrastadas, mas ele não voltou. Então virou o rosto ofendido, como um pássaro ferido. Com a ponta do dedo tirou do canto dos olhos uma lágrima que se perdia. Um barquinho boiando melancolicamente pelas águas fundas, arrastando-se levemente até o negro horizonte. Depois nunca mais... como uma madrugada sem luar. Até que o imponderável aproximava-se como uma estrela nova – e aproximava-o das imagens silenciosas que, como fantasmas, permaneciam distantes. Flutuando pálidos. A saudade.

Mas por que me deixaste assim? refletia. Pois me deixastes desamparado, com uma faca atravessada no peito. Eu, que fazia da tua imagem à minha semelhança; do teu sorrio eu fazia a minha felicidade; os teus olhos turvos mas sem lágrimas... e os meus? e agora? Já não há mais sorriso nem dor. No vazio ficou a ausência. Sou uma lacuna em face da verdade. E minha verdade máxima era a vida. Era a tua vida. Olhávamo-nos como cegos; endurecidos. Até que desabrochávamos e nos uníamos em comunhão perfeita. Compreendíamo-nos. Uma palavra tua e as coisas faziam sentido.

Lembro-me de ti em teus momentos sérios, de perplexidade violenta. Teus olhos enviesavam-se esgazeados, irrefletidos. Tua meditação era secreta, profunda. Até que se aproximava com lentidão, como um cachorro abanando o rabo, e tuas palavras saíam sufocadas de um grito desesperado. Mas é que teus olhos fugiam dos meus. Pois eu também temia-os e com a coragem de quem ama é que eu te encarava e finalmente tirávamos nossas máscaras, fadados de nossos disfarces. E na nossa crueza, reconhecíamo-nos.

Mas é que por instantes teus olhos pressentiam minha angústia maior que é a de quem possui mas não sabe o que fazer com aquilo que se tem. Eu, por não saber o que fazer do meu amor e felicidade, entristecia-me friamente. O desânimo mortificava-me. E no teu amparo, eu me confortava. Eu era, pois. E havia aleluia em ser. Aleluia. Eu, que precisava da tua fé por não possuí-la; eu que precisava de tua piedade. Até que esta tua piedade por mim converteu-se numa fria repulsa e, a farrapos, abandonei o que havia de mais vivo em mim. O bonde. O bonde cruzou as névoas da madrugada e tu, sem saudade, me abandonaste. E então nunca mais...

Lentamente o trem estacionou na plataforma da Estação. Desceu sem amparo, com uma ferida no peito. Uma leve tontura o abateu. A solidão. O frio enlevando o corpo. O que iria fazer de si? Não sabia. De longe, no alto de um muro, viu um gato preto que, num pulo macio, saltou até o chão molhado. Lambeu as patas. E foi embora. A ele também faltava dar “o pulo”. Atravessar o abismo. E com a cabeça erguida, atravessar a escuridão. Mas à noite, porém, apagaria num sopro a flama do passado.

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