domingo, 18 de abril de 2010

Miopia Progressiva

"Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara." (Saramago)

Cada vez mais ele achava que precisava de óculos. Sua cegueira misteriosa que de vez em quando era progressiva. Suas noites eram da escuridão mais límpida; nela, talvez, ele cairia para as profundezas daquela imensidão solitária se olhasse demais sem saber no entanto em que olhava. Então ele não olhava - mas o olhar é preciso, Maria. Olha-se para de repente não se olhar mais. O olhar é uma dificuldade... e por isso é preciso de óculos. Nem que fosse apenas com um olho que Deus me deu, Maria, eu então veria. O quê? O que eu ainda não sei...
... falta-me ver as cento e vinte borboletas presas à sua tiara menina, Maria - os teus sonhos presos na rede de seu véu e os botões de seu vestido desabotoando lentamente no adágio do Chopin em ré menor, Maria - espiar o mistério de seus cachos ondulares como as ondas que vou ondulando serenamente, Maria - amor devia ser teus cachos. e as borboletas de sua tiara. a lágrima cai dos meus olhos, vai caminhando por meu rosto, vai seguindo a trilha de meu sofrimento, meu corpo cansado, meu corpo des-cansado, des-amado, des-habitado, as lágrimas vão deixando rastros de mim mesmo no meu corpo arrepiado. os botões seu vestido, Maria, desabrocham como as rosas Margarida, uma vez Margarida veio e dançou pra mim e eu não vi porque Margarida dizem que é louca louquinha mas ela rodopiou na ponta dos pés o sol ré lá mido Chopin em escalas cromáticas e achei que era eu era louco, Margarida - Maria que eu te espero no portão do jardim - esse jardim feito por homens essa grade feita por homens este céu feito por mim porque o céu me é assim como eu o sou...
... passou a mão na testa enxugando o suor que brilhava como lantejoula. Esperou que um vento batesse no seu corpo, que seus pelos se refrescassem, que o sorriso desabrochasse, que sua camisa colasse ao seu corpo, que o arrepio o afagasse, que a alegria fosse uma delicada borboleta que pousasse-lhe no seu ombro casando. "mamãe dizia que é assim, Maria: que neste instante milhões pessoas se abraçam...
... eu quero teu abraço, regaço, meu bem, teus olhos, Maria.
que eu não enxergo teu brilho.
que eu não sei o que sou, Maria.
***

Maria, talvez se eu te visse, sorrise,
como um mar, ondular, que eu vejo nos meu sonhos... Maria, vês a Margarida? que no meu sonho é apenas um querubim
triste
talvez Deus o tenha esquecido.
... mas eu não te esqueci pequeno querubim, te vejo assim tão frágil tão suave tão sensível à sua delicadeza que eu me desmonto, fico sensível. não te vejo pois te possuo e também sua solidão. Um homem estranho me espia à noite, Maria, eu o vejo tão silencioso, tão escuro em sua capa de chuva que até parece que chove. o homem Maria ele olha e eu não o vejo por que o que é homem Maria? eu que tenho no peito a marca não ainda cicatrizada da flauta que eu não ouvi...
... o homem espia, Maria, repara: vês?
***

... o homem, que era muito desconhecido de si, esqueceu-se. Esquece-se às vezes que se é o que não se é. Ser ou não é não estar convosco. Maria, ele te chama, única. Maria que te invoco. Que te adoro: ouça:
ouço os passos suaves de seus pés no chão frio; teu vestido de seda se arrastando no silêncio do corredor; tuas mão Maria que me tocam e tocam Chopin; teu sorriso como uma pétala - Maria...
.. você não vem...
... por que eu não vejo - eu sinto a tua ausência...



domingo, 11 de abril de 2010

Fantasia Op. 01

Existe um mundo - meu bem - em que as águas
[são transparentes, frágeis como uns olhos;
onde as lágrimas de tristeza cobrem tua face como
[um véu feito do meu suspiro.
Existe um lugar - meu amor - que o silêncio é o
[som de nossa voz;
onde nossos olhos, tão desavisados, contemplam o
[acaso de uma flor que desabrocha.

Existe em algum lugar - eu bem sei - o que ninguém
[jamais saberá;
repousarei-me na suavidade de seu corpo; e sua respiração
[é como a suave brisa de verão.
Existe em algum lugar - eu bem sei - uma sombra
[onde as flores do jardim se desabrocham;
águas límpidas sem fluidez; canção sem palavras.

É neste lugar, meu amor, em que o sol e a lua unem-se;
as estrelas todas espiam as borboletas, enquanto respiramos
[o segredo de Deus.
É neste lugar, meu amor, em que tu me és enquanto eu te sou.
E dentro de nós respiro o mundo e suas águas,
[a sua voz entre as demais vozes,
estilhaçadas e desamparadas no vazio de um deserto noturno.
Somos o mundo e:
Dentro do mundo
somos eternos.

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