quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

A cerejeira

Quando o vento pareceu vacilar; quando as ondas do mar se partiram nas
rochas; quando a baía pareceu estremecer em arrepio; quando o céu se dobrou em
manchas; quando os primeiros raios da noite banharam o silêncio; a paisagem se
avultou como um rosto sombrio, com sua margem cheirando acre, com os coqueiros
balouçando mansas; quando o farol trespassava a solidão com a força da sua
luminosidade incontida; quando das franjas das árvores uma poça se formava ao
chão e os vagalumes bailavam em vestidos transparentes; quando de repente um
grito pareceu nascer do mais tenro vagar do silêncio entre as fímbrias da
relva; aquela era uma terra habitada por sombras que se deitam já ao amanhecer;
o que era aquilo, Deus? um pássaro sincopando a noite; uma lanterna que se levanta
e o caminho se faz íngreme; há um vale a se adentrar; uma montanha imensa
cobrindo a ilha; uma mulher que corre em busca do lençol que escapou do varal;
o que estamos procurando, o que queremos saber na verdade, por que estamos aqui
e agora meu Deus eu já nem sei – assim ele indagava – deslizando na proa do
navio, tateando no escuro, sentido uma força oprimindo lhe o peito; por esta
tempestade que despencava da escuridão em seu irremediável fim para a
eternidade; oh! mas era como se ele tivesse sendo cada vez mais arrastado pela
correnteza incessante que corre célere do fluxo e refluxo do mar; mas é como se
essa torrente estivesse banhada de pétalas de rosas mortas que, ao longo do
caminho, foram sendo arrastadas da curva de um rio; até o momento os sinos se
dobram etéreos; a reverberação de um som inaudito carrega consigo toda a força
de um abalo sísmico; todas estrelas se partem em lamentos sibilantes – o que é
este gesto sensual, o que é este florescer e fenecer, saberemos sempre que
vivemos no limiar do prenúncio, que somos seres periclitantes numa corda bamba;
a morte é isto, é este esgar, é esta flecha atravessando a solidão e no entanto
estamos aqui, a morte é este entrelaçamento sexual no qual gritamos por júbilos
de prazer – a farrapos, com as nossas armas postas ao chão, o nosso estandarte
partido em mil pedaços; um imenso abismo se abre entre nós e sempre estamos
vacilando, fugindo, escapando, indomáveis como touros na arena, esse círculo
mágico que no momento em que tocamos se liquefaz e escorrega por entre nossos
dedos – este pedaço de carne que nos é rasgado, este animal feroz rastejando
faminto sobre a sua presa – estas garras que arranham a parede com a crueza de
um corvo – ah! mas tudo isso, tudo isso não passa de...;
mas eles não se ouviram, não se compreenderam, talvez a noite os
cegasse a tal ponto que o consolo fossem apenas de se manterem cegos ao
desencontro, inertes ao pulsar de um coração feroz, faminto, como mãos colhendo
ouro de uma mina; dentro da noite era como se houvesse a possibilidade da
morte, como se a tempestade embalasse todos os pesadelos e todas as sementes
que os uniam se espalhassem e se ramificassem em raízes profundas – como a
Natureza poderia ser estúpida: erguendo-se e se desfazendo em si mesma como o
próprio fim, edificando-se, nascendo de face com a dor, o espanto, o desamparo;
mesmo que se adentrando em túneis cada vez mais arenosos, fáceis de cederem a
um toque, a um olhar, mesmo que a amplitude de um abraço corrompesse a ordem
natural dos fatores, a Natureza era ignorante diante da morte – porém, haviam
ele e ela que não se contemplavam, mas cingiam-se entre os fios que a Lua tecia
de sua cabeleira;
mesmo que assim fosse: que as colinas da Grécia fossem suaves, mesmo
que de suas encostas o ardor de uma vegetação rala envolvesse o cume de uma
montanha como a majestosa capa de uma deusa helênica; porém, fosse como fosse,
era neste estado que ele se encontrava quando ancorou na Grécia, dias antes,
com as suas malas amarrotadas de roupas, com a mochila recheada de livros, um
mapa meio rasgado colado com uma fita adesiva, uma bússola rachada – porque, de
qualquer modo, todo andarilho está sempre abismando naquele precipício que nos
persegue incansavelmente, devemos construir uma ponte – ele se indagava mais e
mais, pois nunca haveria uma fórmula pronta, a inexatidão é assustadora, não
queria cometer relapsos ou enganos consigo mesmo – pois ainda teria muito o que
seguir;
pois era assim que ele caminhava – com a sua bota de cano alto, com
sua capa de chuva cobrindo-lhe o tronco, as mãos enluvadas por um couro já
surrado – aquele rosto desenhado pelo perigo; porém, ainda com os gestos presos
à uma ingenuidade infantil, como alguém que carrega flores mas ainda continua a
levar tapas na cara; oh! mas que não se assusta, que não se interrompe no meio
do caminho pois há ainda algo de maior dentro de si que o impele a seguir...
ah, talvez fosse o sonho, o devaneio, a mentira, a farsa, a tragédia, os tantos
romances que lera em vida, as músicas que ouvira; também, quando sente fome,
resolve amar e se dividir para tornar-se um – ai, saciam-no com pedras, com
urzes e urtigas - sem querer seu arranjo
de flores cai ao chão e com um tapa na cara e simplesmente sua face saliente se
transborda em cacos, em míseros fragmentos que o vento carrega consigo; não,
pensava ele, não, dizia constantemente, não, e se sentia um monossílabo ao
dizer uma palavra apenas mas que de alguma forma dentro dessas três letras
havia uma força de salvação – a negação era trazida com a morte, com um tiro na
testa, com o coração apodrecendo em cólicas de vômito, sentia-se febril, louco,
ardente, intenso, jorrando labaredas de uma chama incandescente, morta,
exaurida pelos instantes jamais realizados, pelos olhares que jamais foram
encontrados, pelas palavras e gestos que ele jamais ouviria – e o nunca mais se
perdia no tempo; era assim que ele se reencontrava – pois amando ele se
transformava e sua alma saia de seu corpo e apenas sobrevoava toda a realidade
que o circundava – desse modo seu corpo e espírito se reaviam: na exaustão;
então ele voltava a seu lugar-comum, aquilo que diriam ser a sua zona de
conforto e apenas observava da janela, com os olhos expectantes, pessoas
vagando em cada canto – e aquele passante, aquele homem escondido em sua blusa
de lã grossa, sempre ao pôr-do-sol passava sombrio diante de sua casa e ele
apenas observava, ainda se recuperando, ainda tentando buscar aquele estranho e
indefinível estado onde as palavras não viriam mais e a mansidão amainava suas
mágoas e sua fúria, o seu rancor pelos seus amores jamais retribuídos, as
pessoas são como sombras e delas nada sabemos – assim como são imprevisíveis ao
ponto de a odiarmos e amá-las precipitadamente, até que vem o dia vem e com o
Sol tudo se esvanece – era assim que se aceitava condolente; ainda assim, as
pessoas o olhariam com o canto dos olhos – ninguém jamais se entregaria com a
profundidade de escavar novos terrenos, de descobrir cidades submersas, em
encarar o prisma do amor através da solidão e de mãos calejadas;
um dia ele sonhou com uma árvore de cerejeira – era linda! – o campo
imenso de uma fazenda desconhecida, porém a relva musgosa, o céu cheirando a
cinzas de um incêndio, as nuvens turvas como gelo que se derrete, mas lá no
centro de tudo, como uma imensa estátua hirta em qualquer deserto, como um
imenso rio que se desalinha em direção a montanha, lá estava aquela estranha
árvore de cerejeira! – o seu tronco macilento e retorcido e no entanto, como
era bela a sua copa! com as suas flores imensas despencando cores róseas e
esbranquiçadas e seus frutos ainda por amadurecer – porém, uma névoa se
adensara, tudo tornara-se embaçado, mal o sol refletia e seus raios
desapareciam e tudo lentamente se transcorria num imenso silêncio, vazio,
solidão, cores neutras se enfumaçando na paisagem, um pássaro piou tristemente
em algum lugar – em outro mundo talvez – até que nunca mais, nunca mais, nunca
mais... o mundo gira, o mundo rodopia na
ponta dos pés, espera que a Música nunca cesse, que os músicos continuam a
marcar o tempo, a melodia, a delicadeza das plumas da Lua sobre todas as
coisas... a cerejeira também dança, também gira, também se ramifica pelo mundo
em grandes braçadas;
foi assim que um dia ele acordou, se vestiu, arrumou as malas e,
cansado, disse “vou para a Grécia”, queria ir a Grécia, lá havia uma
sensualidade que ele nunca adivinharia, lá haveria talvez a sua cerejeira –
quantos frutos ele colheria? o que ele queria mesmo? ah estava cansado, aflito
e – covarde! covarde! pois fugiria, pegaria a primeira estrada, iria pra
Grécia, por covardia! já estava tão resignado a dor que aceitava compassivo a
sua própria covardia – no fundo de tudo ele era infeliz a tal ponto de ter amor
e não saber dá-lo as pessoas que tanto queria – ele era aquela espécie de
pessoa que causava a morte – só amando, só pensando em amar... talvez desejasse
agora aquela cerejeira para que sob os seus pés pudesse ler um bom livro e
curtir consigo mesmo aqueles amores abandonados, macerados, mascarados e
pisados de até então; peguemos um mapa, tracemos a rota e vamos fazer nossa
lápide!;
já na Grécia encontrou uma aldeia, seria terra das cerejeiras? – por que
ela o deixara? – porém eles nunca se compreenderam – neles havia a linguagem
cercando-os como uma muralha – até que houve a indiferença – ela nunca daria
frutos de cerejeira – nem mesmo a sombra para refrescar a fronde – mas ali
estava aquela aldeia – parecia um engano, um desaviso, um erro, os pontos que
não se encontram e já não tem mais uma reta mas sim qualquer coisa – um traço –
até que a noite cai e tudo se parece um deserto; tudo fica mais frio e ele,
como um gesto involuntário, arruma a gola do sobretudo, quer se esconder mais
do que a noite pode ocultá-lo, sente sede e tem fome, mas a aldeia está
apagada, parecem fantasmas suas luzinhas anêmicas – como não se lembrar dos
olhos dela, aqueles olhos que ardiam ao mesmo tempo que se apagavam quando os
olhos dele a encontravam, era como se algo se quebrasse sem no entanto fazer
qualquer ruído, porém escuta-se ecos, lágrimas que refletem uma mancha escura,
apesar de tão cristalina, era assim que se repeliam e era assim que ela dizia o
seu não, não, não – nunca, nunca, nunca –
vagava como um forasteiro – sentia a fina poeira das ruas da aldeia
roçarem em suas botas sujas – tudo estava fechado, tudo parecia estar
entristecido por aqueles luzes de querosene, as pernas ardiam-lhe de cansaço –
suava e estava frio e a qualquer momento ele previa desabar desfalecido – as casinhas
da aldeia eram pintadas de cores variadas que no entanto já dava para perceber
que estavam desbotadas – as janelas eram impenetráveis, apenas as fracas luzes
das lâmpadas à querosene vasavam palidamente – sentia-se um cheiro de óleo e,
contudo, o que mais interessava a ele e que fazia-o decepcionar que haviam
árvores de todas as espécies, mas não havia a cerejeira – onde deveria procura-la?
em que terras distantes teria que percorrer para encontrar o seu ideal, para
encontrar onde repousar seu corpo cansado e permanecer assim – etéreo – pela eternidade?
a pequena aldeia se fazia aos pés de uma imensa montanha que, pela escuridão da
madrugada, era impossível enxergar sua superfície; onde estaria o fundo das
coisas, onde encontrar verdadeiramente a solidez, a forma, esta mágica frágil,
perene, revestida através de uma ilusão, de um sonho, de uma quimera, através
de uma flor de cerejeira, ele só sabia se indagar cada vez mais;
o dia seguinte nasceu como uma esperança; ele novamente pôs-se a
caminhar na aldeia; ouvia-se um coral arpejado em notas agudas de um piano meio
desafinado, os graves estremeciam as folhas das árvores, as pétalas das rosas
se dobravam, reverenciadas ao vento, a aldeia vazia se embaciava esgazeada,
sombras se deitavam rente ao céu e a terra e não havia ninguém – nem mesmo uma
marca de esperança, de um possível encontro, de querer desfrutar o sabor de uma
sombra numa tarde fresca – qual seria a época em que a cerejeira desabrocharia?
onde foi então que se deixou ceder a tal ponto de ganhar asas e querer
voar? desatinado, afeito a impaciência, tristemente cambaleando como um bêbado
maldito, encontrou uma rota dentro da montanha e quando se vira estava com o
coração selvagem, com a força da montanha a esmagar lhe pela sua existência,
sentia-se como um pássaro preso a ramagens de um arbusto; escalava cada vez
mais a encosta da montanha com a ânsia de conquistar o seu cume, pois nele
havia a fragilidade e no cume da montanha talvez encontrasse a tão sonhada
esperança de estabelecer um repouso para si, essa ânsia de querer sentir a
segurança através do que é tátil, suas imprecisões se perderiam para o sempre,
até que se esgotasse e ele mesmo fenecesse – ah! quantas vezes teria sempre que
recobrar a visão diante das palavras de Virgínia Woolf? “A morte era um desafio. A morte era uma tentativa de união ante a
impossibilidade de alcançar esse centro que nos escapa; o que nós é próximo se
afasta; todo entusiasmo desaparece; fica-se completamente só... Havia um
enlace, um abraço, na morte.”; mas é que no topo da montanha pode-se achar
a chave do segredo onde se possa desenterrar o enlace de nossos mistérios,
nossos artefatos, nossos laços que nos unem; e lá no topo da montanha, talvez
as sementes finalmente despertem dos seus sonos e nasçam, criem raízes e
atinjam o âmago de todas as coisas, solidifiquem-se como uma verdade
irrefutável que é a vida e todos se ajoelhem aos seus pés... mas, espere! quem sabe
não seja somente no cume de uma montanha que a árvore de cerejeira nasça,
somente lá é que podemos tocar na face da Lua, as estrelas, o Sol, a solidão
deixando sua marca – enquanto empurramos o nosso amor e deixamos rolar ladeira
abaixo;
no entanto, como numa visão, entre as brumas e as neblinas que se
engrossavam no topo da montanha, havia sim uma imensa árvore de cerejeira,
fornida das mais lindas flores que exalavam um aroma docemente ácido, plumoso,
macio; ele se ajoelhou diante de uma visão de Deus; a ele agora só teria amor
para dar porque o amor fervilhava dentro de si como lavas de um vulcão
violento; ele tocaria no que é sagrado e dentro dele nadaria até que chegasse a
inevitável hora da morte – o seu destino era esse, era se agarrar a uma árvore –
encontrar a solidão – devemos amar, mesmo que seja algo, mesmo que esse algo
não se mova, não se pode desistir, deve-se amar porque amor é questão de
salvação – e ele, como uma criança, subiu na árvore e dela colheu os seus
melhores frutos, deixou que a fruta explodisse na superfície de sua língua e
todo aquele gosto, aquele aroma violento, o arrastasse cada vez mais para
aquele torrente violenta de paixão – lembrou-se dos olhos, recordou-se também
das sombras que ele nunca pôde agarrar, da sua incapacidade de saber amar, de
ser amado – largou-se ao pé da árvore todo lambuzado e assim ficou –
- até que a eternidade o embalou...






quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

A Mancha.

Eu não irei falar sobre flores; minhas veias estão abertas e delas
escorre o sangue; as sombras se desmancham nos campos onde as vacas dormem;
estas palavras são mal ditas na ponta de minha caneta; poderia estar agora correndo
em algum lugar aberto, deitado à costa de um cavalo, sentindo o galgar de suas
patas; o vento ondulando a mornidão da chuva que ameaça a cair das nuvens
grossas; por quantos anos esperei para que o arranjo de flores se desabrochasse
como uma coroa de louros em minha cabeça – porém, a primavera nunca veio;
tropeço amordaçado; as cortinas se insinuam na janela; púrpuro, incólume,
viçoso; nossos bosques não têm mais flores; nosso canto é uma mentira; quando
me olho no espelho eu posso me ver como um objeto falacioso; um objeto; não
passamos de algo extático; deixemos os livros de lado – que suas páginas
embolorem com o decorrer dos anos; que a curva do rio se arraste para margens
distantes do Atlântico; deixemos que a luz atravesse a escuridão através das
franjas do lustre; minha caneta estoura e a tinta azul escorre violenta e
quente; a primavera nunca veio – o verão não existe; atravessaremos sempre esse
mar de folhas secas que atapetam nossa passagem; viremos a página;
quando peguei no ônibus para N..., sentei-me ao lado de uma janela
ampla; a garoa parecia cortar o vidro em pequenas feridas agudas; porém, lá
havia uma mancha; uma mancha; detive o meu olhar para esta mancha; ela pareceu
crescer em forma, em tamanho, em cor, em brilho, em existência – a vida parece
mesmo com este eterno expandir, dilatar, essa ânsia de querer ultrapassar os
seus próprios limites – até que uma linha se rompe e tudo vaza para o nada;
quando aproximei mais o meu rosto daquela mancha cinzenta (devo dizer que ela
era cinza – será por que estava nublado?) ela simplesmente tornou-se pequena
novamente; aquela mulher gorda apenas espiava – dentro do seu imenso vestido de
flores, parecia um balão; seus seios saltavam como duas gelatinas engorduradas
e contritas; a gorda me espiava, sorrindo e piscando; olhava para mim com uma
curiosidade quase maternal – do que estou falando? – mas e a mancha?; peguei o
lenço do bolso e tentei limpar o vidro; mas a mancha era uma marca, forçamos a
vista para tentarmos olhar através dela; passei cuspe na ponta do dedo, mas não
adiantou; tirei um livro do bolso e as
palavras se entrelaçaram, formaram um nó cego e a mancha caiu sobre minhas
pálpebras;
curioso, mas é um lugar-comum; conforme olhamos e vemos a sua sombra
tornar-se mais consistente, afundamos mais na solidão; porém, quando o sol está
alto no céu, uma multidão parece assistir a tudo isso como um espetáculo – até
a noite cair e tudo esvair no esquecimento; não há o que dizer e não sei porque
escrevo sobre isto – mas vejo que atrás dessa mancha haverá uma marca que
jamais será apagada – logo, em essência, a mancha sempre continuará a existir –
mesmo que em sua forma inexistente; surpreendo-me como uma simples mancha pode
profanar o ritual de um silêncio, o crepitar de uma onda sobre o mar; basta
apenas abrirmos um livro, um romance qualquer, seja o autor russo ou nacional,
e repetidamente caímos no mesmo drama, a roda do círculo vicioso sempre a girar
e quase vemos as palavras narrando a mesma situação, o mesmo medo de sentir e
de ser apreendido por algo oculto, místico, cambaleante entre as curvas de uma
colina – ainda existe uma Montanha inabalável no horizonte que estremece a
retina de meus olhos úmidos...
Como a realidade pode ser
mitigável apenas pelo relance desencontrado de pontos coincidentes que jamais
se entrecruzarão entre si no momento em que se perderam em direções tão
opostas, caminhos tão divergentes? Acredito que deva existir outras formas
menos dramáticas de nos confrontarmos com situações como esta mas, seja como
for, nos depararemos com uma pétala de flor que se desgarrou da sépala e que
agora se enegrece morta dentro de um vaso, ou pela poeira que brilha na
superfície da estante de livros, ou... ou... parece que estamos sendo
importunados constantemente por um puxão qualquer – como se uma criança
atrevida sempre nos tivesse arrastando pelas mangas em terríveis safanões;
suspeito, porém, que a maioria de nós estamos preocupados em sermos
indiferentes a esses bruscos encontros com a sombra do outro; poderia eu fazer
diferente? – ah! mas Deus me perdoe por essa minha cegueira que despenca nas
pálpebras dos meus olhos como uma mão sútil que se fecha a punhos de aço – e é
assim, desavisadamente, que andamos entre vestidos esvoaçantes e carros
acelerados – entre casas e prédios arranha-céus; porque é desta forma que
levantamos a nossa visão entumecida de um estranho negror e enxergamos além da
margem do livro e vemos então... ; oh, mas espere: do que realmente eu ia
falar?
eu não irei cadenciar rimas; meus versos se borraram de tinta; já é
tarde demais – o metrô atravessou a estação furiosamente; resta apenas fumaças
e cinzas; parece que os segundos do relógio se desatinaram freneticamente num
urro dissonante; andaimes e fios de aço se desprenderam da parede e me ataram
numa prisão de concreto; mais do que loucura – eu grito; ninguém me ouvirá;
ninguém virá ao meu socorro; é por isso que emudeço; minha boca se cola à
parede; não quero rezar; ninguém ouvirá meu nome – sou inominável; homem sem
terra; sem lei, furto-me ao pedantismo; – sou um cínico canalha; não sei teu
nome e jamais saberá o meu; beijo tua face com a boca lambuzada de escarro;
quem sou eu afinal? não sei, não sei – não saberás; pouco me importa quem é
você: apenas ouça; assim daremos as nossas mãos; estou despido; nu, ando a céu
aberto; olhos me espiam, mas ninguém me vê; estamos unidos; estamos unidos;
Mais uma vez eu deixo esquecer o que era o assunto principal da
questão – se estou preocupado? realmente, não sei – vamos fingir sermos
indiferentes a essa conversa que se sucede – voltemos ao nosso lugar-comum de
cada dia; falemos daquele homem que há dias atrás se enforcou no meio da
madrugada; há aqueles que suspeitam que o caso não foi suicídio, mas sim
homicídio – pois a namorada deste pobre homem se encontrava no local do crime –
uma negra e, além do mais, pobre! – um absurdo; por que especular o que é
óbvio? mas sob qual ótica? – simples: pela cor negra que se desbota na pele da
moça; a cor da pele é um meio para a justificativa; mas qual é o fato em si
mesmo? e de repente falo apenas de uma negra – e o enforcado? já está enterrado mesmo, não há
nenhuma importância – deixemos a negra de lado, deixemos o defunto enterrado – devemos divagar sobre outras coisas: “também, uma negra com aquele cabelo, com
aqueles pés rachados” dizem as moças e logo o a história principal se torna
algo secundário; mas não é que agora eu não me lembro do que ia te dizer? é a
mancha, é a mancha! negra como a negra! quantas vezes precisarei me reunir
diante da janela, buscando a impalpável leveza das palavras, buscando o
frescor, a brandura de uma vida tenra – fragmento-me em mil pedaços e deixo-me
recolher em sombras mornas, formando um vitral descolorido no horizonte de uma
paisagem presa à minha lembrança; vejo as cores se movendo languidamente na
franja dos meus dedos; sentir um cataclisma me deslocando para outra realidade
que não pertence à carne, ao desejo – deixo-me sucumbir à esta mancha que
aparece na janela da qual passo a reunir gradativamente meus cacos – preciso eu
ajustar as minhas lentes? pois esta mancha é escuramente vítrea, etérea,
deslocada de qualquer existência em si mesma, de onde as ondas se quebram e
formam um arco perfeito de lágrimas espumantes; talvez seja uma nova cegueira,
um novo problema na minha vista – forço-a, esfrego minhas mãos aos meus olhos,
quero atravessar o meu campo de visão para tocar a mancha, mas ela é
impalpável; passo novamente o lenço no vidro da janela com esperança de
arrancar toda a sua sujeira, sua forma excêntrica se espargindo em todas as
direções, suas camadas grossas sobrepondo às mais finas, o sol não se esgueira
através de sua superfície e as estrelas se ocultam em sua sombra; prefiro
fingir, fechar os olhos para não ter que ver sua estupidez hirta na realidade –
fechemos as cortinas e ocultemos o que há do outro lado da janela; vamos ser
incoerentes ao ponto de sorrir e esquecer a torneira da pia de casa aberta –
creio que todos nós cometemos crimes imperdoáveis diariamente; mas
temos rido com histeria dos nossos atos; até chego a me perguntar se não estou
me enganando, que tudo não passa de uma tolice acreditar que somos essa massa
de sonâmbulos delinquentes; mas, seja como for, ainda esquecemos a torneira de
água aberta; esquecemos também de regar as plantas e também, o que é pior...
afinal, o que importa?
Por mais que seja lugar-comum, perco-me facilmente ao falar desta
mancha tingida em minha janela; ah! mas agora violado meu santuário, devo
refugiar-me a que espaço? procuro pessoas, pego o metrô, ando de ônibus, saio
caminhar nas ruas, de vez em quando eu pego telefone e ligo para alguém; vejo
um homem tocando violão e seus acordes são tão dissonantes que me enlevo numa
áurea atormentada numa onda cambaleante de aflição; inquieto-me; Ah, mas o que
fazer com o outro – esse monte de carne esponjosa se arrastando de um lado para
o outro – o que fazer com essa matéria insossa que eles nos entregam? Devo
fechar os olhos? porém, ainda podemos sentir o cheiro do putrefato, da podridão
que é a incerteza, da vaguidão de estar perdido em corredores escuros; suspeito
que tudo isso seja carne morta esfarelando a vida em poeira infértil – será a
mancha em sua forma plena? fossilizamos o que ainda nos resta! cavemos nossa
sepultura! vigiai – pois a mancha me devora;
parece que aquela mancha
cinzenta esta ainda borrando a visão de quem tenta enxergar através do vidro,
enquanto que o ônibus não interrompe sua viagem; cada letra de meu nome desliza
do seu invólucro e se desmancha no ar como um arco-íris; pra quê precisaria eu
de um nome?; meu nome é um número; este número é um segredo que nem eu mesmo
decifrarei; eu só sei cantar essa melodia desafinada que se choca com a parede
embolorada; eu sei o que sou – sei bem, aliás; no entanto, estou longe das
definições; no momento em que descobri o que sou me tornei um inválido; como um
daqueles que ficam largados nas avenidas e em frente de bares pedindo uma
esmola; esses humilhados – mas sou como eles; sento-me na sarjeta e neste
momento rifo-me como recompensa de não ser nada; aquele cego que sai do trem me
compreende: ele não me enxerga; quando estou com fome me alimento dos restos
dos meus sonhos; esse mundo anda a passos de elefante; não acompanho seu ritmo;
vou escrever uma carta; vou escrever um romance; antes, porém, devo me enforcar
num poste para que então eu sirva de aviso; que em minha lápide escrevam:
“Alguém que jamais falou sobre flores”.
Enquanto que a mancha – esta eu deixo para a eternidade...

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Eu quero zombar do Tempo.

(Para o Gustavo Barros)


“Tempo disso, tempo daquilo; falta

o tempo de nada.”

(Carlos Drumonnd De Andrade)


“Só me sinto bem em

liberdade,

fugindo dos objetos,

fugindo de mim mesmo...”

(J.P. Sartre)


Eu percebi que os livros são inúteis. E que não adianta nada pesquisar sobre isso. Às vezes a gente tem que inventar as coisas, mesmo que essa invenção seja uma mentira. E mesmo que essa mentira, quando lida, se torne verdade. Não importa. O importante é exorcizar aquilo que nos pesa. Aquilo que nos prende.

Aliás, acho que tenho um pouco de artista em mim. Logo, não me preocupo em dizer a verdade. Artista é aquela pessoa que adivinha do ar e simplesmente sabe. “Como é que sei? Sabendo. Artistas sabem de coisas” (Clarice Lispector). Não poderia ser mais simples? Se você que me lê neste instante, é porque até agora está tendo a coragem de depositar em mim alguma fé de que isso lhe traga alguma coisa de útil. Você irá perder Tempo. Mas vale lembrar que tempo é uma mentira. Não se assuste: porque é sobre o Tempo que quero falar.

O Tempo é uma mentira. O Tempo não existe. Eu nasci tão nu que nem sabia o que era Tempo. Hoje eu sei o que é o Tempo. Só não me pergunte o que ele é. Santo Agostinho (354-430 d.C) quando perguntado o que era Tempo, respondeu: “Se ninguém me perguntar, eu sei. Mas, se eu quiser explicar a alguém, eu não sei.” E percebi que a ignorância é fascinante.

Só pra dizer que eu pesquisei alguma coisa, em um site qualquer eu encontrei o significado de Tempo. A palavra Tempo tem origem no latim. Ela é derivada de tempus e temporis, que significam a divisão da duração em instante, segundo, minuto, hora, dia, mês, ano, etc. Isso só vem provar que Tempo é uma coisa tão falsa que me escandaliza.

Tempo não é coisa de Deus. A própria Teologia Medieval dizia que Deus é atemporal. Ora, na Bíblia, há uma coisa interessante. “E Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança.” (Gênesis 1:26) Logo, se Deus é atemporal, e se somos a sua imagem e semelhança, então fomos feitos para vivermos nessa atemporalidade. Você, cristão, que me lê agora, não me leve a mal. Eu nem acredito no mesmo Deus que você acredita. E não me venha chamar de pagão!

Spinoza diria: Tudo é um. Ah, como eu amo Spinoza. Deus nos É (mas isso não quer dizer nós sejamos Deus!) – haveria limites para um Deus que se faz presente diante de todas as coisas? Nós morremos e renascemos nesta mesma Terra – tudo é uma única substância, tudo respira de uma única boca – andamos de mãos dadas – e o Tempo é uma invenção para dizer que tudo isso também é uma mentira.

O Tempo no qual pensamos acreditar se trata de um Tempo desmoralizante. Esse Tempo que adora jogar na cara que você vai morrer. E talvez nunca mais volte. Eu aposto que esse Tempo rende muitos lucros. Tempo é uma questão de Marketing. Aproveite o hoje, pois o Tempo é curto. É a mesma coisa que dizer: sacrifique tua vida em prol de outra coisa que não você mesmo. Pois o fim está ai. O Tempo é uma hipocrisia. Os covardes amam o Tempo. Apocalipse Segundo São João é um manifesto dos covardes. Pois a ameaça maior não é a Ira de Deus – mas é o fim do Tempo em si. Os covardes abdicam então sua vida para o Tempo. Parecem virgens. Com suas bocas inúteis. Mas o Tempo foi tão bem elaborado que eu até diria que foi feito por grandes artistas.

Mas é que Deus é atemporal, como eu já disse. Este Tempo aqui, do lado de fora, onde tudo envelhece, desgasta e “morre” é muito material. Mas há esse Tempo sem tempo que eu não quero chamá-lo de Tempo. Chamá-lo-ia de Tempo por formalidade, apenas. Eu me visto de branco e digo meu amor a Deus. Então não acredito nesse Tempo Materialista. Creio que para Tempo não há espaço. Para Deus não há espaço. Para a Arte não há espaço.

Quem é artista sabe muito bem do que falo. Digo novamente: artista sabe das coisas. Artista é um mentiroso que só afirma verdade. O que eu te digo é uma mentira puramente verdade. Arte não é um dom Deus. Arte só uma forma de linguagem que encontramos para falar com Deus. Que os artistas ateus me perdoem, mas essa é a verdade. A arte é um mistério. Na arte não há cinco segundos, nem dez minutos. A Arte é amor. E “quando se ama não é preciso entender o que se passa lá fora, pois tudo passa a acontecer dentro de nós” (Clarice Lispector). O que são dez minutos? Eu juro que não sei – porque ele não existe. Tempo é pedra. Eu prefiro ser essa coisa insossa: escorregando pela eternidade.

A Arte é um fingir que se é. E quando você deixa de ser o que se é não há mais o Tempo. O Tempo só lembra que você existe. Quando você interpreta uma mentira, o Tempo não te pega mais. Quem é você? E você não se é mais. A Arte é a celebração dos corajosos: pois eles se abstêm do Tempo. A Arte consolida a imortalidade. Deus é imortal.

Eu não acredito no Tempo. O Tempo ri de mim com ironia. Se eu morrer amanhã, morrerei sem Tempo. Mas voltarei para os seus braços – este mesmo braço vazio do leitor que me lê. Te darei um abraço. A Morte é um abraço. Afagarei os teus cabelos só pra te lembrar que o Tempo não existe.

Você que acabou de me ler, esqueceu por uns instantes que horas são.

(27 de julho de 2011).

terça-feira, 26 de julho de 2011

Passeio.

Eu não tive coragem de abrir os olhos. Quando eu vi a ponta do horizonte respirando escuridão, eu percebi que o mundo era imenso. As árvores altas cobriam o sol – e o vento era tão macio como as noites frias de Outono. Era Outono.

- Não tenha medo – ele me disse com uma voz doce.

Mas eu não respondi. Porque eu também estava com medo dele. Porém, ele se sentou e senti suas mãos pesadas se prendendo à minha cintura.

- Vamos lá?

Eu fiz que sim com a cabeça. Cheio de medo e espanto. Mas eu podia ver um vitral se formar no escuro das minhas pálpebras. E, de repente, era como se deixássemos cair no centro do turbilhão de uma tempestade. O vento era frio e embalava o meu corpo. Mas nos meus olhos, aquele vitral... o sol se refletindo e as folhas das árvores contornando-se em sombras diante do meu medo. Então eu senti a mão dele acariciando levemente os meus cachos. Estiquei as pernas e o vento parecia se quebrar na ponta do meu pé. E tudo ficou imensamente veloz, e a realidade parecia se dissolver num sonho que fugira da madrugada e agora invadia as silhuetas das altas árvores e se espargia no asfalto cinzento. Mais uma vez ele se agarrou à minha cintura e então me senti mais seguro.

Até que tudo foi ficando mais leve. Tudo deixava de rodopiar e voltava ao seu lugar... o sonho finalmente cedeu o seu lugar à realidade. Mas eu estava de olhos fechados. Não queria apagar a sombra das folhas que margeavam a minha escuridão. Quando abri os olhos, o sol estava pálido. No meu cílio, estava presa uma pequena folha seca. E meu corpo pareceu de dissolver em delírio...

- E então, filho?, perguntou meu pai encostando a bicicleta no salgueiro.

Aquele homem tão imponente me encarava. Sorria. E percebi que ele me amava. E, tendo recebido seu amor, eu queria ser amado novamente.

- Podemos fazer mais uma vez?

(26 de Julho de 2011).

*Desenho: Pedro Takahashi.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Amor.

(Para a Bruna Takahashi)

O vermelho e a púrpura irradiaram com uma força brutal. As cores mancharam em borrões o negro da sala sem luz. Mas era de noite – e havia a Lua espiando. Mas era de noite – e o mistério era uma chama fraca que se incandescia sem força. Era de noite – e o mistério se encerraria a sete chaves no profundo escuro da Terra.

E quando o vermelho e a púrpura pareciam se fundir, de repente o amarelo começou a orvalhar a noite. E as três cores pareceram lutar em si, insanas, famintas, prestes a se rebentarem com violência. Aquela água púrpura avermelhada fora ficando cada vez mais amarelada com o ar suave e fresco da noite. E, com uma impaciência que só a Natureza às vezes tem, um turbilhão se formou em ira e, quem o olhasse a certa distância veria apenas três cores lutando entre si num tornado bruto, cego e violento. No céu, a Lua pareceu se dissolver em pânico... três grandes astros pareceram se aproximar com imponência. Mercúrio, Marte e Plutão oscilaram entre as cores que se inquietavam. Estaria havendo uma guerra? perguntou a Lua que se escondera atrás do Sol. Não, está se fazendo uma nova vida!, respondeu o Sol em suave delírio.

Então as três cores se fundiram e assim nasceu uma cor que se esparramou pela Terra...

A essa nova cor, os homens chamam-na de Amor.

22 de julho de 2011

quarta-feira, 20 de julho de 2011

A Montanha.

(Para o Guto)

“Falta-lhe ainda”, escrevia finalizando a carta, “registrar algumas coisas...”. Reticências. A montanha pareceu se aproximar cada vez mais quando o sol apareceu. O jardim de rosas e lilases se descorou em sombras. Isso quando o sol novamente fugiu. A montanha estremeceu frágil, úmida. Para se afastar novamente ao horizonte. Enquanto que na encosta, tudo estava escuro. Alguns pinheiros velhos e retorcidos se agarravam aos brejos. O sol se mostrou tímido atrás das nuvens e a luz atravessou as franjas do lustre. Então, aquele amarelo-pálido pareceu escorrer com fúria – como água numa gruta. Uma poça se fez no chão e pequenas manchas escuras nadavam na superfície. E quando um pássaro gritou em pânico, as urzes se enrolaram nas lajes, cheias de cólera. A montanha talvez se desfizesse em águas brancas. “... coisas que eu não consigo dizer...”, escreveu enquanto concluía estar sendo um tolo, pois sempre há o que dizer. Ponto final. Na baía, pequenos barcos oscilando. Olhou pela janela – e viu um navio afundando no horizonte... “... toda essa beleza... é insuportável demais...”

Isto ainda não é o fim, pensou apertando os lábios com impaciência. Ainda havia algo fora de ângulo; alguma coisa não estava registrava porque se embaçou diante das lentes. Ele se levantou meio dormente. Com as mãos no bolso. Parou diante da janela, tentando apenas olhar; uma hostilidade ameaçava a visão: mas as ondas do mar apenas se contorciam em pequenas manchas... aliás, o mar estava tão tão tão azul que as ondas brancas pareciam se retrair concêntricas para as profundezas daquela imensidão...

Na outra margem da praia havia um porto. Os navios ancoravam quase que raramente no pequeno cais. Porém, havia os pescadores. Era possível avistá-los de braços nus e salpicados de sal içando suas redes cheias de pesca. O que dava a ilha aquele cheiro de peixes e óleo. Aquele cheiro acre margeando a montanha como uma neblina...

Ah sim! A montanha... é imensa! Encobria parte do horizonte... se naquele momento a montanha parecia dócil e frágil, sob a luz do luar ela era um mistério. Feita de crateras escuras e rochas pontiagudas que se esclareciam banhadas em prata na lua fria. Uma mata densa se fez aos pés daquela esfinge. A montanha inconquistável. Diante daquela praia a montanha era um delírio – com o seu cume imerso em neve. O proprietário do hotel dissera que morreram milhares de exploradores que tentaram desbravar cada reentrância da montanha. Mas a montanha estava em silêncio. Agora, todas as estradas que davam acesso a ela estavam bloqueadas. Não é permitida a entrada de...

“Há algo de errado com essa montanha” começou a escrever, “pois tenho a vaga impressão de que há pessoas lá... apenas espiando... não sei porque essa montanha me assusta. Ás vezes, ela é estúpida. No entanto, pressinto que ela me ameaça. Com uma ferocidade calma. Sim – esta montanha parece ter um ódio paciente.” Repentinamente, um lampejo de luz atravessou a janela – o farol... “mas até parece que eu a conheço bem... será assim tão simples? Como uma vaga lembrança, como degustar entre os dentes essa sensação adstringente de que tudo já se foi? Mas foi o quê, meu Deus? Eu te digo: essa montanha é um delírio...

Os hotéis daqui estão lotados. As casas dos habitantes da ilha se amontoam como favelas na curva da praia. Estou há apenas três aqui, eu sei. Mas também sei que algo me vence. Algo muito maior que eu.

Já era hora de eu ter partido. Ou senão uma montanha seria apenas uma pedra no meu sapato. A vaguidão das brumas no amanhecer é lindo – e quando as borboletas se enroscam nos espinhos das rosas? Pode ser crueldade – mas nas pétalas das rosas há um sangue quente palpitando vida. E essa montanha é tão estúpida que cobre toda a ilha de sombra. Mesmo que o sol insista em iluminar. Antes da mamãe morrer ela me disse: ‘Talvez, se eu estivesse no cume de uma montanha agora, morrer me fosse mais fácil. Aprender a voar dói muito.’”

A tarde se coroava de vermelho. Os andaimes do porto trabalhavam estalando. Toda a montanha, revestida de escuro, parecia lisa. Como a superfície de um ovo. Porém, havia cicatrizes ressentidas. Agora o mar era verde – e o mar se espelhava sobre a montanha. E o vermelho se fundia no verde com certa doçura.

“Mas olhando a Montanha agora, nesse espectro esverdeado, percebo que ela é apenas uma mentira. Pois agora ela brilha tão suave como um sonho. Ela se afasta vencida, como uma palavra que a gente não fala. Ou, talvez, como se fosse algo surdamente ruidoso. Onde espaço perdido de sua superfície parece suspirar incerto – pressinto que esta montanha seja volúvel ao ponto de parecer uma ilusão a quem olha. Se à noite ela me ameaça, agora posso acariciá-la – pois estou tão próximo de seu cume que quase a toco na ponta dos meus dedos. As sombras que caminham sonolentas sobre o mar parece se imobilizar diante da gravidade austera da montanha. Oh, meu Deus, mas sinto que ainda essa montanha desperta algo muito maior do que isso que te digo... mesmo agora com ela se aparecendo uma nuvem – tudo não pode ser uma mentira?”

Quando o sol se pôs no horizonte, o vento pareceu suspirar...

Os pássaros de prata se agarraram às altas folhagens que se moviam solenes... o vento acariciando a paisagens impressionista embebida num suave ninar prematuro, a maresia que banhava a costa da praia... Não! pensou consigo, pois ainda algo pairava hostil sobre aquilo tudo... o coração curvava-se pensativo, tímido, quase sem fôlego, um pouco cansado... ah! mas apenas três dias distante, ele banalizaria aquele vazio que se formava em seu peito, pensava com inquietação... aquela carta era algo inútil – como a Montanha... ele talvez jamais compreenderia que a saudade é assim mesmo: essa fome selvagem de querer possuir o outro, essa sede de querer ter nos lábios o sangue da pessoa para sentir o íntimo do seu escuro pulsando em vida... o que ele poderia entender? se indagava com inquietação... que saudade é essa ânsia de morte?

““Ontem”, continuava escrevendo, “andei um pouco no centro da ilha. É curioso notar como as pessoas daqui se habituaram a montanha. Fui ao porto ver o pôr-do-sol e acabei conhecendo um comerciante. Fizemos amizade no ancoradouro, enquanto ele preparava suas mercadorias para o próximo navio cargueiro que iria atracar em algumas horas. Convidou-me a ir ao seu chalé para me mostrar sua coleção de armas. Achei interessante o convite. Aliás, esse comerciante é muito curioso. Infelizmente ele gesticula demais – parece uma marionete. Sua coleção de armas é fantástica. Mas não pude de deixar de comentar sobre a Montanha. ‘É realmente intrigante’, começou a falar pensativo. ‘Às vezes tenho a sensação de que ela é apenas um susto... essa Montanha – ela se faz em sonho: em cascatas transparentes, como as espumas brancas do mar espargindo na imensa rocha que paira aérea no meio do nada – é lindo de ver o arco-íris que se forma quando uma grande onda rebate nela... A solidão parece se desbravar das sombras da encosta para ir se enrodilhando lentamente até a ponta da cordilheira’ E assim ele sonhou acordado por alguns segundos. “Ah mas morreram muitas pessoas ai!”, disse numa repentina lucidez. Então me mostrou algumas notícias, fotos e recortes e me contou do seu filho que iria explorar a Montanha juntamente com alguns exploradores naquela mesma noite. Fiquei surpreso. ‘Há sempre o que descobrir’, exclamou o meu amigo numa espécie de justificativa a minha surpresa... ... quando voltei para o hotel, não bebi nada, nem comi. Fechei as cortinas. Não queria a Montanha me espiando. Mas desejei imensamente que o filho do comerciante morresse – que a montanha o engolisse com fome. Hoje de manhã, foram encontrados mortos por uma imensa pedra que caiu sobre o grupo, numa espécie de pequena avalanche. Que morte estranha e estúpida!

Mas só agora é como se o meu sol se despertasse e iluminasse o que era impreciso... – como dizer que sinto sua falta? Como te dizer que sinto saudades? Há no verde-esmeralda dos seus olhos o mesmo mistério, o mesmo ardor e a mesma violência de vida que há nesta Montanha. Se eu te encarasse neste momento veria piscando nos teus olhos essa imensa Montanha esverdeada. Assim como eu fixo o meu olhar na Montanha agora só para fazer a tua imagem. E a Montanha me encara com uma fome de rapina.

Eu sempre te exigi demais – eu sei. Como se a sua presença fosse incapaz de me satisfazer. Mas não – o que eu queria era a tua vida! Pois a liberdade que eu almejei, no fundo, sempre fora esta: a de conquistar uma Montanha escura, pontiaguda, feroz, frágil. Mas agora sinto que a minha incapacidade maior foi a de não compreender o teu silêncio – preferi agitar os sinos das torres e afugentar as pombas! Para se conquistar uma Montanha é preciso primeiro começar a passos lentos. Escuta – esse meu caminhar macio e suave farfalhando na relva úmida. Sentir a terra molhada grudando na palma da mão. Deveria ter começado com apenas um suspiro, como uma prece. E ir caminhando tão lentamente. Isto é amor meu Deus! Mas isto é amor! Um amor íngreme. Um amor crestado em rochas ígneas. Até o momento em que só há uma trilha a seguir: e de repente já se está quase numa clareira... e de repente pode-se descobrir...”

A noite caíra. A Terra, por um momento, pareceu estremecer. E, olhando pela janela, a Montanha! Grande, majestosa, imponente. A Montanha. Pode-se descobrir... ele murmurou de sobreaviso. A Montanha até se parecia com uma verdade absoluta! Mas não – vendo as fendas feridas se fazendo ao longo da superfície da Montanha, ele podia enxergar os olhos! Os olhos! Os teus olhos... mas porque agora tudo parecia ser tão mais simples?

“... a Montanha é de um tímido escuro... eu não sei como concluir esta carta... mas eu sei o que preciso fazer...”

Vestindo uma blusa, apesar de não estar frio, e acendendo um cigarro, foi até ao jardim do hotel. Absolutamente nada se movia. Apenas o vento respirando com preguiça. O mar cambaleando em vai-e-vem... dentro daquela imensidão, ele era apenas um ponto que quase não se movia. Era algo sem luz, imobilizado por uma impotência de ser apenas um ponto. Mas, vendo-o de perto, podia-se ver claramente a sua impaciência – a impaciência de um explorador que acaba de encontrar algo extremamente raro. Algo que há muitos anos fora enterrado para não ser descoberto, até que finalmente tudo havia perfeito sentido. Para se descobrir o segredo de uma Montanha, é preciso entrar no fundo de sua intimidade... Esqueci de dizer, lembrou-se assustado, de que esta Montanha parece sofrer, pois o modo como olhá-la a transforma com violência... uma Montanha só deseja ser montanha... quer se estabilizar diante da instabilidade de um olhar, concluiu entrando na primeira estrada da encosta.

“Há sempre o que descobrir”, lembrou-se do comerciante. Mas agora, até mesmo o comerciante dormia aquém daquela Montanha. Voltando para si mesmo, percebeu que era ele, apenas ele, que de tantos olhares lançado a Montanha, agora ele a compreendia. Ainda queria dizer mais coisas para o irmão, naquela carta. “Mas até agora a Montanha fora inexplorada. Porque ninguém a encarou cheio de vontade e força. A Montanha é solitária porque ninguém quis dar-lhe as mãos! Morre-se aos seus pés por falta de compreensão. Realmente, vendo-a de perto, a Montanha é uma abstração: ela se faz em linhas agudas até o topo do céu e se desfaz em cascatas estridentes. Você é o segredo da Montanha – mas a Montanha não guarda segredo algum. A montanha é. Você é. É o quê?”

A Montanha por um momento sorriu. Até que se envolveu em si mesma. O que a Montanha é? perguntou-se com riso irônico. O que você é? e quase como um autômato, seguiu dentro da estrada.

E então finalmente entrou na Montanha...

17 de Julho de 2011

20 de julho de 2011

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Marabastado.

Ao poeta-pastor de sonhos Pedro Takahashi.

Esta terra está seca. Sim senhor. É só o vento passar que a poeira se levanta. A gente enxerga as coisas com lágrimas nos olhos. A luz do sol arde. Sim – atravessa todo ardentemente o cristalino tremeluzente que vai escorrendo... – não, meu senhor, não estou enganado. Este amarelão que vai brotando do escuro e vai se fazendo no horizonte até que a cara toda fica arrebatada – Eita Marabastado! – as cores se fundem, vão rodopiando num turbilhão, o sol se desmancha num quadro em branco senhor! Este som de violoncelo, tão plangente – retirante humilde e plangente – tão assim desse jeito: sisudo, olhando de viés, a cara abaixada, só olhando para os pés cascudos e sujos; as unhas grossas e compridas. Não fala nesse tom não, meu senhor, tão amarelado que parece até de noite! de tão escuro...

... mas este cristal já antigo, empoeirado que vai se empolando nas reentrâncias escuras e inexploradas de um mundo tão desajeitado. E você vem me dizer que tudo está assim: quase que normal?

Mas a terra tá seca lá do outro lado. A gente atravessa mares – Sim, Marabastado! – e o gado fica lá perdido no meio da relva de pedra. A gente ancora na terra úmida e deixa pra trás a solidão do amarelo entorpecido extasiando as sombras desfeitas em lembranças. Até que a gente chega na outra ponta da montanha e a luz do sol é tão outra que se esparrama retumbante em sete cores do prisma azulado do céu morno.

Mas lá também o rebanho secou, meu senhor. E agora?

A gente constrói cercas para que nada fuja até que tudo vai ficando cinzento: uma fumaça nublando as estrelas à noite, as rosas murcham nos vasos e a gente vai se esquecendo no caminho. Maltrapilhos. Retirantes de terras de solombra.

Está tudo cinzento? Ou tudo é um sonho?

segunda-feira, 7 de março de 2011

Quintas paralelas...

para Rafael Xicão.
... é quando meus dedos deslizam nas teclas do piano tentando buscar o seu sorriso cheio de espanto.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Primeiro Ato.

e então ele se arrastou lentamente, saindo da mornidão da penumbra que encobria o palco nu, e como se houvesse apenas o silêncio, toda a plateia pareceu imobilizar-se com a cara enviesada mas os olhos brilhantes... ele continuou a se arrastar até que de repente não mais e de repente mais que jamais um turbilhão arrastou a poeira que enfraquecia no esgar da noite - uma gota escarlate de sangue àquela hora era tão púrpura que um olho esgazeado espiou com medo e um brilho emergiu dos lábios macios do sangue que agora era pálido - e assim as cortinas se fecharam...

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O amor é só um modo de olhar.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Conto Incacabado - II

“Na loucura eu me desprendo do desejo”,

abriu a cortina e o amarelo-cinzento esparramou-se no silêncio; a poeira se ergueu e rodopiou no ar seco até que as narinas se dilataram ressequidas... uma explosão de cores se movimentavam no chão sem sombra – virgem;

“Na dor eu renego a carne”,

- preciso ouvir Bach, pensou; mas ainda era tarde e o sol estava fosco e os pássaros emudeceram porque o dia lembrava a noite – o negro se dissolveu no branco e o céu desenrolou-se cinza;

“E no amor eu renego a solidão”,

cansou de escrever, deixou o lápis de lado. Precisava trabalhar – ainda queria chegar a tempo para o jantar, beijar a esposa, botar os filhos na cama... mas se o próximo paciente fosse o último de seu expediente talvez ainda desse tempo de conceber uma exceção quase única: não voltar para casa exatamente às seis da tarde... quem sabe caminhar um pouco? esquecer dos dias compridos... não, Sou velho, pensou – pois a idade parecia as rédeas que o retesavam; alguma coisa dentro de si partira com o passar dos anos: os ventos eram outros, agora só lhe restava as cinzas das horas consumadas na longa espera, a vigília de sonâmbulo... nem mesmo o prazer o libertaria do sofrimento arraigado no seu coração... mas se talvez se excitasse com alguma moça no meio da praça? pensou bruscamente... mas seria traição – no entanto, traição parecia uma palavra falsa: trair o quê? Estaria traindo apenas a minha raça de homem... – e aquele dia seria único entre tantos que pareciam iguais – “já imaginou?”, pensou – “cada gota do mar é igual a outra?”, e logo sentiu que afundaria no seu próprio mar... o retrato da esposa sobre a mesa, espiando espiando, aquele rosto fino e o nariz reto – e os olhos olhando obliquamente como a apontar-lhe o dedo no rosto parecendo adivinhar seus pensamentos

(“... e no amor eu renego a solidão...”)

passou a língua nos lábios e a sua garganta estava áspera, Que sede, pensou; a tarde fria e seca entrava pela janela e invadia o consultório, procurou confortar-se na poltrona porque de repente irritou-se consigo mesmo, Merda, mas antes que pudesse fazer qualquer gesto ouviu três pancadas na porta, era a Secretária, então abriu a porta e um rosto escuro apareceu, Seu próximo paciente chegou Doutor, mando entrar? Sim, por favor, e a Secretária desapareceu no escuro do corredor e seus passos eram redondos e reverberava entre os móveis entre o lustre que pendia no teto, Estou mas é cansado, e estalou os dedos...

não queria atender ninguém logo logo era ele que iria precisar de um psicólogo urgentemente porque as pessoas estavam irritando-o cada vez mais, E eu lá com os problemas dos outros!, Não não – pensou – não posso fugir de mim, ainda me resta a sobriedade, a esperança – pois cada um é um mundo

“É preciso buscar/

- Olá Doutor!;

... o óculo do Médico deslizou até a ponta do nariz; largou o lápis – a frase inconcluída..., Por Favor, sente-se...

- E então, qual é o seu problema?

- Nenhum.

... o preto e o branco – as cores... como numa palheta, fundiram-se e cobriram o consultório... Eu é que nunca entendo... não entendo. Simples. “As pessoas”, começou a anotar na sua agenda, “são apenas um borrão...”; eu talvez seja apenas uma mancha...

- Bem Doutor, o problema não é comigo... é com ele... conta pra ele André!

Um caso de esquizofrenia, talvez. As coisas as pessoas são tão simples assim às vezes – vagas vezes são estúpidas quanto a própria Natureza: previsíveis... esse aí eu não me demoro...

- E qual é o problema dele?

- Bem Doutor... acho que o senhor não vai entender... nunca ninguém entende...

(Em litteris: as pessoas são estúpidas. Sim senhor.)

- Os dias têm estado muito escuros freqüentemente... por que nada é nada? As coisas não poderiam ser mais simples? Não, não Doutor, é isso. O nem mesmo o senhor poderá entender... acho que falta por o pingo nos iis. Ou é ou não é. Ou é oito ou oitenta... agora André me segue dia e noite como um encosto... dia e noite... dia e noite... não é engraçado isso? Nem mesmo o dia anda junto com a noite. As coisas foram feitas para a solidão. Nem sol nem lua juntas... óleo não se mistura com água...

Mas e o preto no branco? pensou o Doutor. Suaves linhas brancas começaram a se erguer verticalmente dentro de si; suaves e mansas... até que se desfaziam em cascatas no alto... lembrou-se do dia em que foi a uma ilha passar suas férias – o farol, o holofote amarelo-pálido como o sol, a luneta com a lente trincada, os navios naufragando no horizonte – mas isso era loucura...

- Doutor, o André precisa de ajuda... ele tem medo, Doutor...

- Do que André tem medo?

- Do buraco.

- Buraco?

- É, Doutor, do Buraco. Agora é todo dia: vai anoitecendo e um buraco vem se aproximando cada vez mais dele... ele foge em disparada, parece um cavalo em pânico correndo no campo, mas o buraco vem vem vem... de mansinho... vem também o frio... quando o buraco fica mais perto, ele se agarra a qualquer coisa que vê pela frente... André não pode ficar mais sozinho... será que terei que cuidar dele? isso é muito pesado pra mim... cuidar de alguém... isso é tão mais incômodo quanto me ser alguém...

... alguém poderia abismar facilmente num buraco onde as sombras refrescam... e eu também não sei o que penso... “Tudo não passa de um símbolo”, escreveu na agenda. Preciso de um breve lampejo de apaziguamento... como aquele dia... foi só um beijo e nada mais nada de romantismo... estou fugindo, não fuja, não fuja...

- ... e tem também os sonhos, Doutor. Os sonhos.

(Claro! os sonhos... na faculdade, o meu professor costumava a repetir: “O sonho representa a realização de um desejo”. Freud?)

- eles são horríveis, ele sempre acorda gritando, suando... até que desmaia...

(e quando espiei pela luneta os barquinhos afundando no horizonte? o mar parecia um sonho...) não fuja: mas esse ai não parece esquizofrênico...

- Objetos sólidos..., não! Doutor, e as cores? Esquecemos das cores, fingimos que tudo é branco, que tudo é preto. De dia é amarelo e de noite é azul escuro... mas as cores, Doutor? até nas bolhas de sabão... as cores atravessam seu ponto de contato e as cores se transformam...

“Nada se perde nada se cria tudo se transforma”, até eu meu Deus não escapo minha mulher me disse uma vez, Você não é eterno, e por quê não? sou a imagem e semelhança de Deus e sempre me renovo... e quando eu encontrei escondidas nas sombras ela, eu não esperava que fossemos... as ondas repicavam o mar soturno... até que a tempestade rasgou a madrugada e um raio partiu nosso mundo em dois...

- Não sei, Doutor... as cores nos transformam em objetos sólidos, até mesmo André concorda comigo... André??

- Você tem dormido bem?

- Eu sim, mas...

- Tem estado muito ansioso?

- Não,mas...

- Toma algum tipo de drogas?

- Nenhuma, mas...

- Fez algum...

- Doutor, os sonhos.

- Que sonhos?

- Do André...

(...talvez... será alucinações?...)

- O que tem eles?

- André tem medo, Doutor. Já disse...

... o mar afunda o barquinho, a baía se apazigua com a brisa da noite, o farol se apaga... eu preciso dessa brisa... a noite mansa... foi no farol aquele beijo... não havia um rosto me espiando e me despindo – só os lábios... os meninos dormindo com a mãe e a chuva rebentava entre as coisas... a brisa nos envolveu e eu beijei seus lábios...

Conto Incacabado - I

[CRÔNICA APÓCRIFA DE MARIA MADALENA]

A forma se concebeu através do caos – milhões e milhões formas praticamente infinitas sucederam-se em rajadas de luz e vento – em solidão e silêncio... até que a noite grande apaziguou a grande agitação fez formar então o primeiro gesto – o verbo – e assim se fez o mundo – porque assim Deus o quis – no primeiro dia a luz não raiou porque a palavra de Deus ainda reverberava entre os vales e montes – entre as rochas nuas e os grandes desfiladeiros – entre um grão e outro de areia na praia seca – pois a Terra foi antes de mais nada apenas uma coisa inacabada em seu princípio – pois assim que Deus quis – até que o silêncio cobriu toda a imensidão vazia da escuridão e o medo o terror e a truculência das sombras alimentaram o ódio que germinou nas profundezas das rochas – e Deus vendo que a malignidade se instalava em sua terra disse Haja Luz e então houve luz – e logo depois houve o dia e a noite – o mar e terra – o vento – as árvores e os animais – até que Deus concebeu o primeiro homem e deu-lhe o nome de Adão – este seria a imagem e semelhança do Criado – e Deus achou que era bom;

e por isso Deus criou a mulher a partir da costela de Adão e chamou-a de Eva – e Deus viu que era bom – mas Eva era um nome que sibilava na boca de Adão como o rastejar de uma serpente ssssshhhhhhhh – como as águas que se agitam no mar – Eva era um nome que era fresca como uma noite de ébano e quente como a lua límpida na calidez da madrugada – mas tudo ia bem – porque Deus concebeu a vida – e a vida gerava a vida – e Deus viu que era bom – o que Deus queria afinal? –

até que houve um dia que num instante bilhões e bilhões de anos pareceram estilhaçar-se em pedaços tão pequenos que a estes só restou a tragédia Divina e Diabólica – amaldiçoado seja aquele cuja a palavra seja o silêncio – derrama-se o sangue nas grandes tragédias – e Eva, tendo traído o paraíso, lavou com sangue o fruto do seu ventre – Amém! – e restou a marca de seu sangue sobre o leito do rio vagaroso sempre a escorrer escorregando como uma manta branca um véu quem sabe mas não mais límpido nunca mais branco violado amordaçado pelo pecado capital mas do quê? de sentir o prazer na carne e

assim passaram-se muitos e muitos anos e eu – também gerada do mesmo gérmen de vida; nasci; pois um Anjo não como o de Maria, mãe de Jesus, mas sim um Anjo tosco e malfadado talvez cansado de tanto trabalho nesta Terra de ímpios apareceu à minha mãe e disse Vá e Sê mulher, e tu terás uma rebenta, filha de teu ventre, carne de tua carne e sangue de teu sangue, foram essas as palavras do Anjo torto disse minha mãe – e por isso fui chamada de Maria Madalena – pois Maria tornara-se um presságio de boa sorte mesmo sem saber que Cristo ainda seria reencarnado no ventre da Maria Altíssima – mas a mim restara nos meus primeiros instantes ainda no vente de minha mãe a sina de ser mulher carregar o véu branco sobre a cabeça e pendurar a estrela mais pura como gelo sobre o peito – submissão e devoção – essa é a missão de mulher que caleja e trabalha para a humildade e o amor – porque a mulher só resta o amor e a piedade meu Deus ai de nós entre as mulheres – porém um Anjo (terá sido o mesmo que aparecerá à minha mãe?) anunciara, Pois vá mulher: segue tua cruz!

E tendo transcorrido nove meses eis que a luz brota no ventre de uma entre tantas outras mulheres prenhas na face da Terra – foi numa tarde seca e lânguida de sábado e as galinhas ciscavam e as vacas mugiam e os cavalos corriam na terra batida e minha mãe na grande sede e glória tornou-se mulher e me pariu sob a sombra de uma velha árvore infrutífera – nasci de um grito e tendo nascido passei a existir a minha vida que seria apenas um ruído até o Grande Dia – mas sendo estas crônicas de palavras enxutas e as mais curtas possíveis terei que omitir parte de minha vida já que não tenho função nenhuma nesta História a não ser a de pecadora – mesmo perdoada; e lavado meu corpo com o perdão a marca do Pecado reside como uma cicatriz em meu peito de rapina ferida –

porém houve um dia em que me achei mulher feita e encontrei entre minhas pernas uma flor negra que brotava no abraço de meu corpo um arrepio tão frio e solene que eu quase chorava de uma emoção tão misteriosa que desabava em delírio – fez-me lembrar da árvore retorcida da qual nasci e que as sombras do pôr-do-sol revolviam as folhas secas em suaves cores do vermelho-amarelo-pálido – esquálido – dos olhos de Deus; e sendo assim com um estremecimento de corpo e alma eu vivia e um Pastor me disse, O prazer da carne é a purificação da alma, mas eu não sabia o que era Prazer – enveredei-me em seus mistérios sem-saber-como mas um dia eu desbotei como uma Rosa vermelha-sangue e os meus olhos refulgiram como o ébano e meus lábios estremeceram como um riacho e minhas pestanas esvoaçaram como pássaros; e minha mãe me disse, Sobre o mundo existe apenas um Deus, minha filha, e esse Deus é todo amor é todo perdão misericordioso e é só Nele que purificamos a alma, foi então que resolvi me devotar a Deus pois o que era aquela força selvagem pulsante em meu peito quase a arrebentar em violência? eu me perguntava e andava na relva olhando o vento agitar as águas tranqüilas correrem no regato e também o farfalhar das folhas suculentas e eu andava sem pensar porque o pensamento era tão mais forte do que eu que era preciso não deixar me esmagar com sua lassidão – e a brisa da noite amornava meu corpo (seria febre?) – até que a madrugada vinha como um ladrão e a lua me envolvia como um véu – tenho dentro de mim uma pira de óleo ungido, pensava, e também incensos e jóias e oferendas, tenho dentro de mim a vastidão de um mistério que se mantém guardado a sete chaves na própria natureza: ser Mulher! não humana pois longe disso sou apenas mulher a quem um Anjo Torto me condenara a ser e então eu me-sou! mas o óleo que tenho a oferecer? em sacrifício de mim mesma eu não sou o que poderia ser para me ser pois sei que tenho dentro de mim talvez sete pilares perfeitos no qual eu me Adoro mas e as árvores a água do regato os pássaros o cão que ladra a vaca que muge os homens que gritam as mulheres que dão a luz? um redemoinho enveredou-se na estrada de terra levantando a poeira e fundindo as cores que se esparramavam no céu quase azul-quase-branco e uniu as coisas cada vez mais até que se transformassem em uma única coisa – coisa única talvez seja existir e sentir o que se sente quando se vive e talvez o mundo seja todo este turbilhão e todas estrelas e todas as cores além da noite e dia e da aurora e do crepúsculo e seu hiato – vielas e violas emitem seus acordes que se propagam através do silêncio e eu me descubro nova como uma recém-nascida – e eu busquei o Pastor que me disse que o prazer purifica a alma – quis cantar uma música para embalar sua tristeza escondida atrás do azul de seus olhos mas as nuvens se deitam e ameaça a chuva – e se chover? purificar-me-ei sentindo meu corpo absolvido e se integrando... se integrando... ao mundo porque tudo é um e se Deus existe sei que Ele está dentro de mim e tudo é um... tudo é um tudo é um tudo é um... a música sempre se desenvolve no mesmo compasso então tudo é um... os pássaros pululam nas árvores e um rio corre dentro de mim porque tudo é um... eu sou Mulher de um mundo de Homem – Única – e os Homens me devoram a quem eu devo devotar os meus desejos? porque sou mulher e procuro o meu véu perdido as rosas derramam-se sobre meu leito e sendo assim digo Amém Amém Amém

e tendo acontecido tais coisas senti-me Única e a Vida pulsava dentro de mim – busquei o Pastor em seu campo a pastorear as ovelhas e ele me olhou como uma fera e que tem sede e eu o olhei como uma fera e que tem fome – pois a vida era demais para mim e eu – Única – descobri como uma força no mundo , Sê Mulher, disse-me o Anjo, e então lancei aos braços do Pastor que me envolveu em seus braços – seus olhos crisparam-se e os meus também porque o Mundo era feito da entrega e, sendo assim, o mundo é propulsor da vida em si mesmo e eu deitei na relva porque era bom – o sangue de Eva derramou-se mais uma vez sobre o meu corpo cálido que agora eu não era apenas um corpo – era a integração, Sê Mulher, disse o Anjo Torto sem sorriso e sem placidez mas sim solenemente como o rufar de tambores – a qualidade mulher é ser Mulher – então eu me entreguei ao Pastor porque havia o amor e o prazer e eram criação do Deus – pois Ele viu que era bom;

tendo acontecido tais coisas foi então que me entreguei aos prostíbulos – e eu vi que era bom; Sê Mulher, mas não fora o Anjo, agora me era porque me sou então eu fui – mas um dia apareceu em meu quarto um homem humilde e magro e tinha os pés sujos e as mãos sujos mas seus olhos refulgiam como a nascente de um rio e seus olhos eram vermelhos como as frutas doces no pomar – e ele me disse, Eu sou André e vim aqui para que me ensines o fruto da vida, e assim foi – tendo passado a noite o homem humilde deitou-se em minha cama e ele disse que era bom –

passado outro dia a noite chegara como um ladrão e também um homem não tão humilde e vi que ele era o cobrador de impostos da cidade e me disse, meu nome é Levi e vim aqui para que me ensines o mapa do desejo,

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

xiiii penicou

À Pri Oliveira, a quem deu muitas saudades.

Faz tanto tempo que não chove. Hoje choveu.
Larguei o paletó sobre o sofá. Fechei as cortinas. Apaguei a luz.
Minha Senhora, o rádio vem falhando há alguns dias ch ch ch ch ch ch
mas acho que é a tempestade que vem se anunciando com as nuvens
cinzentinhas; restos do meu cigarro.
Lembra daquela vez? Você me disse:
- Há tantas coisas não ditas... palavras soltas no ar...
Eu não respondi. Fiz-me de entendido.
"Besteira".
Senhorinha!
Estava tão certa! Tap! dou um tapinha na minha testa... às vezes a gente prefere
comer de garfo e faca - e por que não comer com a mão?
Senhora,
não ligue!
Acho que bebi demais...
Você se curvou sobre o escuro mas seus olhos ainda estavam em pé:
- No mínimo perdidas entre os olhos fundos profundos...
Coloquei meus óculos escuros. Minhas olheiras eram roxas demais -
esqueci de regar o canteiro de violetas;
Um realejo tocava lá fora - lembra Senhorinha? - e você disse:
- Não me leve a mal, são doces. Só não sabem lidar com o açúcar.
Sim senhora.
De tanto que é doce que perdi o ponto.
E agora? xiiii penicou.
Só me resta remendar às minhas calças rasgadas...

domingo, 2 de janeiro de 2011

Palavra.

Eu tenho um nó na garganta.
Preso à língua, rente ao céu da boca,
algo tão úmido e seco, azulzinhamente
cortando o oco silêncio
da minha mudez.

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