sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Conto Incacabado - II

“Na loucura eu me desprendo do desejo”,

abriu a cortina e o amarelo-cinzento esparramou-se no silêncio; a poeira se ergueu e rodopiou no ar seco até que as narinas se dilataram ressequidas... uma explosão de cores se movimentavam no chão sem sombra – virgem;

“Na dor eu renego a carne”,

- preciso ouvir Bach, pensou; mas ainda era tarde e o sol estava fosco e os pássaros emudeceram porque o dia lembrava a noite – o negro se dissolveu no branco e o céu desenrolou-se cinza;

“E no amor eu renego a solidão”,

cansou de escrever, deixou o lápis de lado. Precisava trabalhar – ainda queria chegar a tempo para o jantar, beijar a esposa, botar os filhos na cama... mas se o próximo paciente fosse o último de seu expediente talvez ainda desse tempo de conceber uma exceção quase única: não voltar para casa exatamente às seis da tarde... quem sabe caminhar um pouco? esquecer dos dias compridos... não, Sou velho, pensou – pois a idade parecia as rédeas que o retesavam; alguma coisa dentro de si partira com o passar dos anos: os ventos eram outros, agora só lhe restava as cinzas das horas consumadas na longa espera, a vigília de sonâmbulo... nem mesmo o prazer o libertaria do sofrimento arraigado no seu coração... mas se talvez se excitasse com alguma moça no meio da praça? pensou bruscamente... mas seria traição – no entanto, traição parecia uma palavra falsa: trair o quê? Estaria traindo apenas a minha raça de homem... – e aquele dia seria único entre tantos que pareciam iguais – “já imaginou?”, pensou – “cada gota do mar é igual a outra?”, e logo sentiu que afundaria no seu próprio mar... o retrato da esposa sobre a mesa, espiando espiando, aquele rosto fino e o nariz reto – e os olhos olhando obliquamente como a apontar-lhe o dedo no rosto parecendo adivinhar seus pensamentos

(“... e no amor eu renego a solidão...”)

passou a língua nos lábios e a sua garganta estava áspera, Que sede, pensou; a tarde fria e seca entrava pela janela e invadia o consultório, procurou confortar-se na poltrona porque de repente irritou-se consigo mesmo, Merda, mas antes que pudesse fazer qualquer gesto ouviu três pancadas na porta, era a Secretária, então abriu a porta e um rosto escuro apareceu, Seu próximo paciente chegou Doutor, mando entrar? Sim, por favor, e a Secretária desapareceu no escuro do corredor e seus passos eram redondos e reverberava entre os móveis entre o lustre que pendia no teto, Estou mas é cansado, e estalou os dedos...

não queria atender ninguém logo logo era ele que iria precisar de um psicólogo urgentemente porque as pessoas estavam irritando-o cada vez mais, E eu lá com os problemas dos outros!, Não não – pensou – não posso fugir de mim, ainda me resta a sobriedade, a esperança – pois cada um é um mundo

“É preciso buscar/

- Olá Doutor!;

... o óculo do Médico deslizou até a ponta do nariz; largou o lápis – a frase inconcluída..., Por Favor, sente-se...

- E então, qual é o seu problema?

- Nenhum.

... o preto e o branco – as cores... como numa palheta, fundiram-se e cobriram o consultório... Eu é que nunca entendo... não entendo. Simples. “As pessoas”, começou a anotar na sua agenda, “são apenas um borrão...”; eu talvez seja apenas uma mancha...

- Bem Doutor, o problema não é comigo... é com ele... conta pra ele André!

Um caso de esquizofrenia, talvez. As coisas as pessoas são tão simples assim às vezes – vagas vezes são estúpidas quanto a própria Natureza: previsíveis... esse aí eu não me demoro...

- E qual é o problema dele?

- Bem Doutor... acho que o senhor não vai entender... nunca ninguém entende...

(Em litteris: as pessoas são estúpidas. Sim senhor.)

- Os dias têm estado muito escuros freqüentemente... por que nada é nada? As coisas não poderiam ser mais simples? Não, não Doutor, é isso. O nem mesmo o senhor poderá entender... acho que falta por o pingo nos iis. Ou é ou não é. Ou é oito ou oitenta... agora André me segue dia e noite como um encosto... dia e noite... dia e noite... não é engraçado isso? Nem mesmo o dia anda junto com a noite. As coisas foram feitas para a solidão. Nem sol nem lua juntas... óleo não se mistura com água...

Mas e o preto no branco? pensou o Doutor. Suaves linhas brancas começaram a se erguer verticalmente dentro de si; suaves e mansas... até que se desfaziam em cascatas no alto... lembrou-se do dia em que foi a uma ilha passar suas férias – o farol, o holofote amarelo-pálido como o sol, a luneta com a lente trincada, os navios naufragando no horizonte – mas isso era loucura...

- Doutor, o André precisa de ajuda... ele tem medo, Doutor...

- Do que André tem medo?

- Do buraco.

- Buraco?

- É, Doutor, do Buraco. Agora é todo dia: vai anoitecendo e um buraco vem se aproximando cada vez mais dele... ele foge em disparada, parece um cavalo em pânico correndo no campo, mas o buraco vem vem vem... de mansinho... vem também o frio... quando o buraco fica mais perto, ele se agarra a qualquer coisa que vê pela frente... André não pode ficar mais sozinho... será que terei que cuidar dele? isso é muito pesado pra mim... cuidar de alguém... isso é tão mais incômodo quanto me ser alguém...

... alguém poderia abismar facilmente num buraco onde as sombras refrescam... e eu também não sei o que penso... “Tudo não passa de um símbolo”, escreveu na agenda. Preciso de um breve lampejo de apaziguamento... como aquele dia... foi só um beijo e nada mais nada de romantismo... estou fugindo, não fuja, não fuja...

- ... e tem também os sonhos, Doutor. Os sonhos.

(Claro! os sonhos... na faculdade, o meu professor costumava a repetir: “O sonho representa a realização de um desejo”. Freud?)

- eles são horríveis, ele sempre acorda gritando, suando... até que desmaia...

(e quando espiei pela luneta os barquinhos afundando no horizonte? o mar parecia um sonho...) não fuja: mas esse ai não parece esquizofrênico...

- Objetos sólidos..., não! Doutor, e as cores? Esquecemos das cores, fingimos que tudo é branco, que tudo é preto. De dia é amarelo e de noite é azul escuro... mas as cores, Doutor? até nas bolhas de sabão... as cores atravessam seu ponto de contato e as cores se transformam...

“Nada se perde nada se cria tudo se transforma”, até eu meu Deus não escapo minha mulher me disse uma vez, Você não é eterno, e por quê não? sou a imagem e semelhança de Deus e sempre me renovo... e quando eu encontrei escondidas nas sombras ela, eu não esperava que fossemos... as ondas repicavam o mar soturno... até que a tempestade rasgou a madrugada e um raio partiu nosso mundo em dois...

- Não sei, Doutor... as cores nos transformam em objetos sólidos, até mesmo André concorda comigo... André??

- Você tem dormido bem?

- Eu sim, mas...

- Tem estado muito ansioso?

- Não,mas...

- Toma algum tipo de drogas?

- Nenhuma, mas...

- Fez algum...

- Doutor, os sonhos.

- Que sonhos?

- Do André...

(...talvez... será alucinações?...)

- O que tem eles?

- André tem medo, Doutor. Já disse...

... o mar afunda o barquinho, a baía se apazigua com a brisa da noite, o farol se apaga... eu preciso dessa brisa... a noite mansa... foi no farol aquele beijo... não havia um rosto me espiando e me despindo – só os lábios... os meninos dormindo com a mãe e a chuva rebentava entre as coisas... a brisa nos envolveu e eu beijei seus lábios...

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