sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Conto Incacabado - I

[CRÔNICA APÓCRIFA DE MARIA MADALENA]

A forma se concebeu através do caos – milhões e milhões formas praticamente infinitas sucederam-se em rajadas de luz e vento – em solidão e silêncio... até que a noite grande apaziguou a grande agitação fez formar então o primeiro gesto – o verbo – e assim se fez o mundo – porque assim Deus o quis – no primeiro dia a luz não raiou porque a palavra de Deus ainda reverberava entre os vales e montes – entre as rochas nuas e os grandes desfiladeiros – entre um grão e outro de areia na praia seca – pois a Terra foi antes de mais nada apenas uma coisa inacabada em seu princípio – pois assim que Deus quis – até que o silêncio cobriu toda a imensidão vazia da escuridão e o medo o terror e a truculência das sombras alimentaram o ódio que germinou nas profundezas das rochas – e Deus vendo que a malignidade se instalava em sua terra disse Haja Luz e então houve luz – e logo depois houve o dia e a noite – o mar e terra – o vento – as árvores e os animais – até que Deus concebeu o primeiro homem e deu-lhe o nome de Adão – este seria a imagem e semelhança do Criado – e Deus achou que era bom;

e por isso Deus criou a mulher a partir da costela de Adão e chamou-a de Eva – e Deus viu que era bom – mas Eva era um nome que sibilava na boca de Adão como o rastejar de uma serpente ssssshhhhhhhh – como as águas que se agitam no mar – Eva era um nome que era fresca como uma noite de ébano e quente como a lua límpida na calidez da madrugada – mas tudo ia bem – porque Deus concebeu a vida – e a vida gerava a vida – e Deus viu que era bom – o que Deus queria afinal? –

até que houve um dia que num instante bilhões e bilhões de anos pareceram estilhaçar-se em pedaços tão pequenos que a estes só restou a tragédia Divina e Diabólica – amaldiçoado seja aquele cuja a palavra seja o silêncio – derrama-se o sangue nas grandes tragédias – e Eva, tendo traído o paraíso, lavou com sangue o fruto do seu ventre – Amém! – e restou a marca de seu sangue sobre o leito do rio vagaroso sempre a escorrer escorregando como uma manta branca um véu quem sabe mas não mais límpido nunca mais branco violado amordaçado pelo pecado capital mas do quê? de sentir o prazer na carne e

assim passaram-se muitos e muitos anos e eu – também gerada do mesmo gérmen de vida; nasci; pois um Anjo não como o de Maria, mãe de Jesus, mas sim um Anjo tosco e malfadado talvez cansado de tanto trabalho nesta Terra de ímpios apareceu à minha mãe e disse Vá e Sê mulher, e tu terás uma rebenta, filha de teu ventre, carne de tua carne e sangue de teu sangue, foram essas as palavras do Anjo torto disse minha mãe – e por isso fui chamada de Maria Madalena – pois Maria tornara-se um presságio de boa sorte mesmo sem saber que Cristo ainda seria reencarnado no ventre da Maria Altíssima – mas a mim restara nos meus primeiros instantes ainda no vente de minha mãe a sina de ser mulher carregar o véu branco sobre a cabeça e pendurar a estrela mais pura como gelo sobre o peito – submissão e devoção – essa é a missão de mulher que caleja e trabalha para a humildade e o amor – porque a mulher só resta o amor e a piedade meu Deus ai de nós entre as mulheres – porém um Anjo (terá sido o mesmo que aparecerá à minha mãe?) anunciara, Pois vá mulher: segue tua cruz!

E tendo transcorrido nove meses eis que a luz brota no ventre de uma entre tantas outras mulheres prenhas na face da Terra – foi numa tarde seca e lânguida de sábado e as galinhas ciscavam e as vacas mugiam e os cavalos corriam na terra batida e minha mãe na grande sede e glória tornou-se mulher e me pariu sob a sombra de uma velha árvore infrutífera – nasci de um grito e tendo nascido passei a existir a minha vida que seria apenas um ruído até o Grande Dia – mas sendo estas crônicas de palavras enxutas e as mais curtas possíveis terei que omitir parte de minha vida já que não tenho função nenhuma nesta História a não ser a de pecadora – mesmo perdoada; e lavado meu corpo com o perdão a marca do Pecado reside como uma cicatriz em meu peito de rapina ferida –

porém houve um dia em que me achei mulher feita e encontrei entre minhas pernas uma flor negra que brotava no abraço de meu corpo um arrepio tão frio e solene que eu quase chorava de uma emoção tão misteriosa que desabava em delírio – fez-me lembrar da árvore retorcida da qual nasci e que as sombras do pôr-do-sol revolviam as folhas secas em suaves cores do vermelho-amarelo-pálido – esquálido – dos olhos de Deus; e sendo assim com um estremecimento de corpo e alma eu vivia e um Pastor me disse, O prazer da carne é a purificação da alma, mas eu não sabia o que era Prazer – enveredei-me em seus mistérios sem-saber-como mas um dia eu desbotei como uma Rosa vermelha-sangue e os meus olhos refulgiram como o ébano e meus lábios estremeceram como um riacho e minhas pestanas esvoaçaram como pássaros; e minha mãe me disse, Sobre o mundo existe apenas um Deus, minha filha, e esse Deus é todo amor é todo perdão misericordioso e é só Nele que purificamos a alma, foi então que resolvi me devotar a Deus pois o que era aquela força selvagem pulsante em meu peito quase a arrebentar em violência? eu me perguntava e andava na relva olhando o vento agitar as águas tranqüilas correrem no regato e também o farfalhar das folhas suculentas e eu andava sem pensar porque o pensamento era tão mais forte do que eu que era preciso não deixar me esmagar com sua lassidão – e a brisa da noite amornava meu corpo (seria febre?) – até que a madrugada vinha como um ladrão e a lua me envolvia como um véu – tenho dentro de mim uma pira de óleo ungido, pensava, e também incensos e jóias e oferendas, tenho dentro de mim a vastidão de um mistério que se mantém guardado a sete chaves na própria natureza: ser Mulher! não humana pois longe disso sou apenas mulher a quem um Anjo Torto me condenara a ser e então eu me-sou! mas o óleo que tenho a oferecer? em sacrifício de mim mesma eu não sou o que poderia ser para me ser pois sei que tenho dentro de mim talvez sete pilares perfeitos no qual eu me Adoro mas e as árvores a água do regato os pássaros o cão que ladra a vaca que muge os homens que gritam as mulheres que dão a luz? um redemoinho enveredou-se na estrada de terra levantando a poeira e fundindo as cores que se esparramavam no céu quase azul-quase-branco e uniu as coisas cada vez mais até que se transformassem em uma única coisa – coisa única talvez seja existir e sentir o que se sente quando se vive e talvez o mundo seja todo este turbilhão e todas estrelas e todas as cores além da noite e dia e da aurora e do crepúsculo e seu hiato – vielas e violas emitem seus acordes que se propagam através do silêncio e eu me descubro nova como uma recém-nascida – e eu busquei o Pastor que me disse que o prazer purifica a alma – quis cantar uma música para embalar sua tristeza escondida atrás do azul de seus olhos mas as nuvens se deitam e ameaça a chuva – e se chover? purificar-me-ei sentindo meu corpo absolvido e se integrando... se integrando... ao mundo porque tudo é um e se Deus existe sei que Ele está dentro de mim e tudo é um... tudo é um tudo é um tudo é um... a música sempre se desenvolve no mesmo compasso então tudo é um... os pássaros pululam nas árvores e um rio corre dentro de mim porque tudo é um... eu sou Mulher de um mundo de Homem – Única – e os Homens me devoram a quem eu devo devotar os meus desejos? porque sou mulher e procuro o meu véu perdido as rosas derramam-se sobre meu leito e sendo assim digo Amém Amém Amém

e tendo acontecido tais coisas senti-me Única e a Vida pulsava dentro de mim – busquei o Pastor em seu campo a pastorear as ovelhas e ele me olhou como uma fera e que tem sede e eu o olhei como uma fera e que tem fome – pois a vida era demais para mim e eu – Única – descobri como uma força no mundo , Sê Mulher, disse-me o Anjo, e então lancei aos braços do Pastor que me envolveu em seus braços – seus olhos crisparam-se e os meus também porque o Mundo era feito da entrega e, sendo assim, o mundo é propulsor da vida em si mesmo e eu deitei na relva porque era bom – o sangue de Eva derramou-se mais uma vez sobre o meu corpo cálido que agora eu não era apenas um corpo – era a integração, Sê Mulher, disse o Anjo Torto sem sorriso e sem placidez mas sim solenemente como o rufar de tambores – a qualidade mulher é ser Mulher – então eu me entreguei ao Pastor porque havia o amor e o prazer e eram criação do Deus – pois Ele viu que era bom;

tendo acontecido tais coisas foi então que me entreguei aos prostíbulos – e eu vi que era bom; Sê Mulher, mas não fora o Anjo, agora me era porque me sou então eu fui – mas um dia apareceu em meu quarto um homem humilde e magro e tinha os pés sujos e as mãos sujos mas seus olhos refulgiam como a nascente de um rio e seus olhos eram vermelhos como as frutas doces no pomar – e ele me disse, Eu sou André e vim aqui para que me ensines o fruto da vida, e assim foi – tendo passado a noite o homem humilde deitou-se em minha cama e ele disse que era bom –

passado outro dia a noite chegara como um ladrão e também um homem não tão humilde e vi que ele era o cobrador de impostos da cidade e me disse, meu nome é Levi e vim aqui para que me ensines o mapa do desejo,

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