terça-feira, 5 de outubro de 2010

Abel.

P.S.: Esse conto eu fiz para um trabalho de escola, no ano passado. Não está muito bom, mas eu encontrei-o perdido em minhas coisas. Resolvi postar.


Por que a noite era difícil? As estrelas impossíveis, a lua era um pálido fantasma boiando silenciosa na noite fria e escura. E ele também era quieto e escuro. Porque a noite era grande demais e a ele só havia apenas duas pequenas mãos e dois pés calejados. Então: a noite imensa enquanto o próximo dia era distante e irrealizável. Impossível quanto a um pensamento não estabelecido – as imagens distantes ofuscando os fatos. A solidão. Talvez se houvesse música, talvez se houvesse uma voz apaziguadora para seus pesadelos...
... mas as horas vagas. Enquanto que o outro dia seria sempre o mesmo, com o mesmo furor e brutalidade, da frieza de um Deus imponderável que sobre um mundo inteiro Ele pisa. Vai morrendo lentamente, como uma nota aguda do piano em sucessão. Folhas secas e cinzentas forrando o chão. Ele era um morto. Pois de si haviam violado com sete golpes seus sete misteriosos segredos ao gume de palavras frias e cortantes. Pois ele era feito de sete gloriosos segredos – Antigo Testamento, portões de ferro e ouro a sete chaves – o mistério fala mais alto que a claridade. Mas o que era de si afinal?
Olhou-se no espelho, o cabelo úmido escorrendo pela face. Os olhos. Os olhos endurecidos. E inutilmente tentou buscar dentro de si as respostas para do que era feita sua matéria.
Lembrou-se da escola, de suas salas espaçosas e frias. Dos corredores compridos e embaçados. E dela, o golpe fatal de uma seta pontuda desferindo o centro do peito. Não fora na aula de gramática ou de literatura que descobrira que a palavra era perigosa como a ponta mortal de uma lança. E tinha ódio e medo da palavra, como se nesta sempre houvesse o perigo maior de perder-se em suas verdades e suas mentiras, e nela lentamente agonizar lucidamente pelo que ela é. Como se com sede tomasse um copo fulminante de veneno e dela curtisse através dos lentos segundos o sofrimento. Ou como o soar de um tambor arrítmico que logo se transforma em eco. Longínquo e assustador, como quando antigas tribos anunciavam o ataque ao inimigo através de seus tambores. Ele já era um iniciado para as lutas sem glória. Ele que descobrira no limiar da dor o poder das palavras nos corredores das escolas, em becos sujos das ruas, nas salas de aula, no pátio do colégio. Então, por piedade de si, por misericórdia, já não escrevia mais. Por ódio e por rancor também. Nem quando a lua o vigiava, nem quando o sol lhe aquecia. Assim como os outros que lhe cercavam e tinham-lhe o mesmo ódio sincero pelo qual cuspiam-lhe na cara as palavras-facas. Até que um dia, cansado, recolheu o que ainda lhe restava de si. E com a ponta dos dedos, através das linhas imaginárias que lhe restavam foi cosendo seus retalhos. Até que o que lhe restara fora a solidão.
No pátio da escola, o coração esfria quase sem sangue. O vazio. As árvores murmurando pela primeira brisa da manhã. Caminhava na ponta dos pés – mas seus passos... seus passos. Confundindo-se com o silêncio de fantasmas que dormem nas sombras de seus pesadelos. Então parou de repente assustado consigo mesmo. Pois não sabia qual era o limite daquela paz feita de um ódio calmo e sereno. Feito de ruídos de seus passos. Como se estes anunciassem o prenúncio de um novo ato da tragédia. Então se imobilizara fragilmente diante do seu próprio medo. Evitou mover-se – mas de uma árvore um pássaro cantava rudemente. Evitou seus próprios ruídos – mas do coração palpitante lateja uma música estranha, selvagem, abrindo e fechando avidamente, como se tivesse fome. Fome antiga há muito tempo não sentida – seria de vida? Uma vida que nunca possuiu; macerada pela pobreza de si mesmo diante do mundo? Mas quem era pobre afinal: o mundo em sua grandeza ou ele reduzido a sua pobreza? Mas de repente seu coração imobilizara-se. Bruscamente ele caíra para dentro de si, em suas cavernas úmidas e intumescidas pelo desespero. Os passos vinham de longe e aceleradamente. Passos que não eram seus mas que ele, com pavor, reconhecia-os na fragrância de seu medo. Ele, que desistira de ser um gênero, fugindo sempre da escuridão demoníaca da noite fria – mas é que o sol não amanhecia e então aprendera como um cego a atravessar seus dias em grandes noites. Enquanto ele adivinhava que pés apressados aproximavam-se, pés ocos que crepitavam como fogo no oco silêncio. E ele não se movia, pois a sua maior coragem era a covardia. Ele não fugia, pois ele submetia-se ao seu medo como um cão disciplinado. O que fez foi apenas sentar-se sem amparo ao chão cinzento, pois facilmente ele se entregava. Cansado. De quem desiste da luta. E não soube distinguir seus pensamentos dos passos que agora estavam próximos, próximos...
O que se sucedeu então foram mãos fortes e decididas que agarravam-no com segurança. Ele virou o rosto porque não permitiria entregar-se ao medo – o hábito faz com que a gente perca o medo das coisas. E com apenas um murro ele encontrara-se deitado ao chão, o sangue escorrendo da boca – como Abel na hora da morte, não se deleitou de seu próprio sangue, não sofrera por sua própria morte: como o muro de Israel ele assistia a queda lenta dos sete portões que o cercavam em um efeito dominó. O cerco caindo, enquanto que Caim assistia sem arrependimento o mistério da vida cruamente escorrendo-lhe na ponta de seus dedos. Desferindo-o com um golpe pelo gume brilhante das sete profecias dos anjos do Senhor. Ele aceitava submisso, silenciosamente, sem gritar porque já não lhe havia forças. Ou porque a ele só lhe restava aceitar humildemente o que lhe era entregue. A vida era assim pois. Enquanto que o Caim sorria o riso brilhante e malicioso de quem toca no sangue precioso – no segredo. Até que lentamente o sangue definha – e seu riso torna-se menos cruel, mas sim feito de malícia. Pois eu bebo de teu sangue, pois eu vivo de tua pobreza. Pois amanhã, não do tenro pescoço, mas de minhas doces palavras eu me saciarei de sua covardia. Até que as vozes sumiram.
Voltou o rosto para o corredor vazio. As salas de aulas fechadas e silenciosas. O murmúrio de uma cidade que se desperta ao lado de fora. Levantou-se do chão lentamente. Pegou seus cadernos do chão. Apoiou o braço no próprio corpo, como a asa de um pássaro ferido. No piso transparente da escola, viu refletido seu sangue, escorrendo no canto da boca, formando uma pequena poça vermelha, vivíssima. Aquele sangue que já não era mais seu. Não o reconhecera. Tentou não pensar pois mais do que o não reconhecimento era de repente não existir. Não sentiu o corpo e pensou por um átimo de segundo que sua existência era feita de um sonho que se confundia com uma realidade que não era sua. Foi ao banheiro para encontrar paz.
Sentou-se no ladrilho e, abraçando os joelhos, não pensou. Mas recolheu-se para dentro de si. Como uma estátua, seus olhos esgazearam-se cegos, um pouco tristes. Ficou imóvel por alguns minutos. Até que ergueu lentamente o rosto para o espelho. E viu o rosto fundo, fendido por marcas e cicatrizes. Mas os olhos. Notou uma marca cruelmente vermelha. Lembrou-se que uma vez disseram-lhe que quando uma coruja se machuca, na íris de seus olhos uma marca aparece e, conforme ela vai se curando, essa mesma marca cristaliza-se como uma cicatriz. “Estou ferido”, pensou. Queria saber quem o odiava tanto para massacrá-lo todos os dias. Pensou em Deus e então cuspiu cheio de mágoa. Não precisava de Deus e nem da piedade alheia. Olhou os olhos fundos. O gosto do sangue subiu-lhe na boca. E do furor de suas cinzas, sentiu-se como o próprio Caim.

(15/11/09)

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