segunda-feira, 5 de julho de 2010

Maçã Verde

A lua vai desenhando no chão um vitral pálido através das folhas e dos galhos da grande árvore do jardim que recorta o céu da noite em indivisíveis cacos de sombras e estrelas. Enquanto o silêncio vai atravessando lentamente cada canto da escuridão entre as casas vizinhas que se casam com a penumbra de quem dorme. Mas o silêncio às vezes vibra pelos grilos grilando agudamente. Porém a paz é quase inabalável, um lago transparente tremulando pela brisa que vem das árvores.
"O amor...", riscava Eduardo, "... não é o fim das coisas; amor é nascimento." Parou de escrever; por um instante olhou para o próprio escuro que o cercava. Não, nada de romantismo, pensou. "Amor é reintegração. Fundir-se ao silêncio", ajeitou um livro desarrumado, "... fuga cromática de Bach." Dá um longo bocejo, larga a caneta na escrivaninha. Já está sem interesse. Olha pela janela e percebe que a lua afunda cada vez mais na neblina branca que recobre a escuridão e então percebe que a madrugada avança. Cansado, um pouco triste também (mas sem romantismo), joga-se na cama. E de repente, a sensação de que todos os seus nervos desprendem-se do seu corpo.
Clarissa era um mistério. Uma nódoa mal feita, talvez. Ela era de repente assim: uma estrela quente e brilhante que fugazmente se apaga morna - e não se vê mais nada. A noite...
- A noite está tão linda... tá vendo aquela estrela?
- Qual?
- Aquela ali!, Eduardo aponta com o dedo, - que parece mais um vaga-lume...
- Não vejo..., diz Clarissa distraidamente.
- Nem eu quase a vejo - Eduardo suspira - ela está fugindo... você está linda, Clarissa!
Ela inclina a cabeça enquanto põe o brinco. Não ri.
- Não fuja, meu bem..., suplicou Eduardo.
- Mas eu estou aqui!
- Não! não fuja...
- Jamais..., mas ela estava quase desértica, planando em outros campos.
- Às vezes você prende o silêncio nos lábios... como uma rosa...
- Estou mas é cansada!
Ela fecha os olhos. Respira.
- Clarissa... eu te amo...
- Qual perfume?, ela agita na mão dois frascos de colônias.
- Aquele de Maçã Verde..., interrompe-se. A lua parecia agitar os cabelos de Clarissa, assim como o vento agita as rosas no jardim. - De qual tragédia grega você fugiu, amor?
Clarissa ri. Um riso cheio de malícia.
- De tragédia, querido... já basta a minha própria vida...
O vento lá fora bradou forte e repentinamente invadiu o quarto, trazendo consigo folhas de árvore. Um cheiro de terra úmida misturou-se ao perfume de Clarissa. Uma pétala de rosa prendeu-se aos cílios de Clarissa.
- ... creio que as grandes tragédias estão nos detalhes - enquanto falava, tirava a pétala dos cílios - uma palavra qualquer e de repente tudo pode transformar-se num drama...
A cortina se estufou pelo vento. Na varanda, as folhas secas eram arrastadas no chão. Eduardo parecia flutuar, uma água suave deslizava pelo seu corpo. "Fundir-se ao silêncio: fuga cromática de Bach." As palavras que à pouco escrevera, agora tomavam formas e cores. De dentro da penumbra, uma mão delicada e sensível dedilhava no piano acordes eriçantes. Aos poucos, os sonhos que permaneciam escondidos na sombras eram embalados pelos arpejos que se sucediam como passos lentos de uma corsa. Uma faca fria encostando-se repentinamente no seu coração quente. Eduardo levantou-se, ri baixinho, um pouco excitado. Vai caminhando lentamente, guiado por um fio invisível que se prende ao seu corpo e embala-o como uma criança... as estrelas espiam através das janelas. Aproxima-se cada vez mais do piano insone...
Pequenas borboletas de asas brancas e macias vão desenhando incríveis arabescos no ar, enquanto duas mãos vão se agitando nas teclas do piano como sonâmbulos... havia na sala apenas o clarão da lua como testemunha...
- É Bach..., lançou Eduardo.
O último acorde do piano foi se perdendo até que o silêncio partiu-se em mil pedaços. As borboletas ainda brincavam no ar.
Os olhos de Clarissa voltaram-se para Eduardo e seus olhos deslizaram-se para o fundo dos de Clarissa.
- Ré menor., insistiu ele mais uma vez.
- São apenas lágrimas, meu bem..., a voz de Clarissa era uma luz apagada.
- Mas...
- Não, Eduardo... você não compreende...
Clarissa voltou-se ao piano e novamente pôs-se a tocar. Seus dedos eram plumas, asas de um pássaro ferido... enquanto Eduardo era arrastado para fora da sala, carregado por uma fria escuridão, cada vez mais sem entender pois ele nunca entendia as coisas - sabia que havia Bach... -, e era apartado para uma terra-sem-homens por águas estranhas uma maré mansa trazia consigo um passado jamais vivído - as gaivotas eram retratos mudos...
- Escute essa fuga..., disse Clarissa enquanto desenrolava um tema em suas mãos...
- Ontem de manhã, quando eu vi...
- Shiiiiiuu!, interrompeu Clarissa - Só ouça...
... mas ele já não escutava mais nada pois cada vez mais que deixava-se envolver pela música mais ele ensurdecia... cada nota musical que soava era como um fio que se prendia ao seu corpo imobilizando-o na noite; tanta coisa a dizer mas uma flecha atingira-o no peito e o mistério era uma mão fria que apertava seu coração; talvez tudo não passasse de um desmaio sem desfalecimento... até que num lampejo ofuscante ele não pensava em mais nada... um cheiro de maçãs verdes inundou frescas o luar... não pensava em nada... não pen-sar em nada... mas tanto o que dizer!... mas só música... mú-si-ca!...
- Acho... que não quero mais te ver!, disse Clarissa interrompendo abruptamente a fuga. Ela inclinou a cabeça mansamente, um pouco sonhadora, os lábios vermelhos... um silêncio desabrochou como uma flor noturna...
- Mas ontem de manhã, Clarissa...
- Não, Eduardo. Você não entendeu..., ela levantou-se. O xale de seda que vestia foi escorregando lascivamente pelo seu corpo. As pequenas borboletas aos poucos foram se prendendo ao cabelo de Clarissa, deixando rastros prateados no ar; formaram uma tiara branca, macia... Clarissa encarou Eduardo, mas ele só via música...
- Você nunca irá compreender, Eduardo! Nunca entende...
- Mas é tanta coisa... - o dedo de Clarissa selou os lábios de Eduardo.
- Eu não quero nada, Eduardo! Ouça...
As árvores estalando, os sapos coaxando, as estrelas brilhantes tão longe como um sonho... a languidez do tempo se arrastando...
- Tudo não parece um sonho?
Ela beija a testa de Eduardo. Ele fecha os olhos. Maças verdes. "... tudo não parece um sonho?...", sentiu o peso da ausência se fazendo presente, a solidão se abatendo no coração cada vez mais...
A cortina se inflou. A lua se aprofundava cada vez mais na noite. Eduardo abriu os olhos e todo o quarto repousava. Clarissa... era um fantasma rasgando uma multidão que dorme... um labirinto emaranhando-se no sofrimento. Mas o cheiro de Maçãs Verdes esparramando-se pelo clarão do luar... Eduardo inclinou-se na cama... uma pequena borboleta branca pousou em seu braço... até que o vento a carregou para fora do quarto... então Eduardo deitou-se novamente, fechou os olhos... as águas de um rio seguia seu curso len... ta... men... te...

Um comentário:

  1. Belíssimo Lê!!! Eu não sei porque mais eu tenho a leve impressão de já ter visto essa personagem Clarissa em outra crônica sua.Eu acho que essa crônica é muito a sua cara Lê!!!Mesmo contando uma história vc é muito intimista, e eu adoro isso em suas crônicas. Nunca pare de escrever e fazer o que vc gosta, porque vc tem futuro...bjus fofo tô morrendo de saudades de ti!

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