quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

(era um amor que exigia inundações)

Era um amor que exigia inundações. Mas abundância não era o adjetivo correto para aqueles tempos difíceis – onde a seca, a estiagem, tornava tudo muito lúgubre, passível a se deteriorar na terra rachada. Porém, eles se uniam para as grandes escavações que um se entregava ao outro, fazendo assim de suas vidas um itinerário sacro, quase como uma promessa – essa mesma, a de grandes conquistas, de atravessar túneis escuramente empoeirados – de perceber encrustado nessas paredes de argila as folhas e flores de anos fossilizados – marcas, nódoas borradas – o osso de um primata – esse amor macerado pela escuridão – pois estavam prestes a se unir pela desunião que o acaso se compromete – o acaso... essa palavra que se ergue como uma visão, apenas – ninguém o olha inteiramente...

Eles poderiam não se submeter a todo esse turbilhão que segue o ritmo das ondas – que desabrocha como um suspiro – vai e vem em oscilações brandas – e quando eles se sentavam na praia e o rumor da vida se agita ao seu redor, tudo parece se derreter – nada poderia ser mais sincero do que aquele amor que bramia aos esvoaçar de asas e quando os olhos de ambos apenas viam uma pequena pena azulada se perder para sempre nas ondas do mar – mas ela que, por capricho, prendia entre os cachos uma folha de coqueiro e tudo se enroscava em incompreensão e desaviso, aquela solidão fiada em sombras refrescantes – ela abria os olhos e não falava nada.

Nós nos desdobramos em mistérios, abrimos as portas e deixamos que o vento entre com sua mansidão esverdeada – ela poderia abrir o seu corpo e fazer dos seus nervos como cordas tensionadas de uma harpa prestes a ser tangida, onde a música se desfaleceria em segredos sussurrados – de alguma forma, ela sempre estivera pronta ao desencontro, por mais que entre eles houvesse aquela comunhão perfeita, onde as notas de um órgão se harmonizam perfeitamente ao coro de vozes que sublimam o salmo antes de a missa se iniciar; mas deve-se perdoar todos os tipos de lapsos que os sentidos podem cometer, pois somos presas fáceis de um mundo que se ergue através de cores e formas; ele, por exemplo, parecia insistir sempre nas mesmas notas avulsas, onde as palavras em branco parecem transmitir sempre as mesmas mensagens; ele, que seria capaz de subir ao topo de uma montanha e lançar-se apenas por uma brincadeira infantil; os pássaros parecem rajadas de prata ferindo o céu que vaza espumas brancas; eles se debruçam na praia, sentem a areia roçando-lhes o corpo, mas aquele gosto de sal apodrecendo na boca, se cristalizando nos dentes – aquela sensação gélida e esverdeada correndo moroso por cada artéria do corpo, querendo trespassar a pele em pequenos cristais transparentes, sente-se que o coração é volátil, sensível a uma queda brusca de pressão; sente-se essa mão que aperta o peito e nos deixa intranquilos, de modo que olhamos para o alto e as gaivotas são bruscas e sérias, estúpidas, com suas penas azuladamente foscas; eles sabiam que precisavam colocar a lente certa para poder enxergar através de suas pupilas um novo mundo – com esta insustentável paz, inflando-se através das cortinas e das ondas, onde as moscas zunem ao redor da comida apodrecendo, nas horas que se transfiguram impalpáveis como contas de vidro – até que se amadurecem e se despencam em cachos no chão; vê-se a polpa molemente se desfazendo, sendo sorvida pela terra úmida, eles apenas assistem absortos a dança que se faz sem compasso até que a terra se fecunda em brotos do passado...

Eles sabiam também que aquele sentimento incerto que os uniam em laços exigiam peregrinações em trilhas desconhecidas, onde as sombras se deitam, onde os espinhos se levantam – seriam mártires apenas de si mesmos; cegos, inconscientes, mas deixando que a lassidão os dominasse por puro prazer do cansaço – mas sem jamais desistirem desta luta inglória, onde de suas raízes nasceriam cutículas de lágrimas mortas; alguém, um dia, acenderá uma vela para que o músico cante sua melodia dissonante, e eles marcharam em passos pequenos, tímidos, arrastados – assim como, dentro da noite, eles eram jogados para dentro de si com tal brutalidade que um ônibus atravessava-lhes o peito e os arremessavam para tempos jamais descritos por homem algum; mas desbravavam a desordem, estendiam-se em campos largos e frescos, podiam sentir o mar se dobrando sobre seus pés e sinos de prata alçavam vôo para terras ermas, desconexos da realidade em que olhos orbitavam cansados da eternidade; mas, pela fé, assim como pela ignorância de serem algo que não pertencem a alguma classe de heróis, eles se debruçavam diante de um santuário e como sacrifício eles jamais se tocariam; sentiam suas mãos cada vez mais se afastando, esse nó que os atava arrebentando pelo vácuo maculado pelo sangue; abre-se um poço imenso, joga-se dentro dele, assim vai-se rolando ao longo do tempo, algo vai se formando, vai se lapidando, vai se fazendo por si só, solitariamente, em caminhos escarpados, difíceis de serem ultrapassados pela inconsciência; assim era aquele amor que não se tocava em palavras claras, por cores neutras, por manchas apenas – borrões, marcas desbotadas, notas insistentes no piano – pega-se um livro, lê-se alguns parágrafos, mas a imagem continua ali: estática, viva, imoral; fecha-se as janelas, espantam-se as pombas da varanda; mas eles pegam rotas distintas, numa corrida onde uma flecha certeira poderia atravessar para sempre toda a eternidade das coisas e partir em infinitos pedaços a única mancha – então seriam infinitas manchas que seriam jogadas ao vento, então sobre o Mundo cairia um grande silêncio, inabalável, intocável, como se houvesse o medo distinguindo-os desse mar de gente que se despencam um sobre o outro; mas eles não se reconheceriam nem assim, distantes, frios, sem nada, inócuos de uma vida promissora, arranhando apenas aquilo que se encontra diante de seus olhos brancos; a noite se ergue, as cinzas de uma tempestade se desfazem em espumas; um navio desembarca e carrega consigo o último forasteiro – agora é terra de desertores, eles jogam, tudo cede e fica vazio, ouve-se Bach, sente-se o frio percorrendo a espinha – um jorro de vida se estremece diante da inabilidade das coisas se tocarem, de se amarem e de se tornaram alguma coisa só... era este sofrimento, esta impossibilidade, esse recuar – essa ânsia de ser um só – um só um só um só – tudo é apenas um – somente... pois que...

... era um amor que exigia inundações...

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