quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Que se parece uma onda...

O vento suspirou. As franjas do alvorecer repousaram sobre o campo...

Um homem não pode deixar de se enganar pela sua visão; um homem, na verdade, não pode deixar-se trair pelos próprios sentidos – estava parecendo um tolo – devemos perdoar este lapso de Orlando, que ainda despertava, mas fumava seu cigarro? Um homem, ao despertar, é tão vulnerável como um recém-nascido – devemos desculpá-lo – porém, a Natureza é implacável. Orlando lançou seu olhar pelo campo; mal a névoa se dissipara, as árvores do pomar se mesclavam em borrões sutis ao céu azulado – as folhas farfalhavam como uma pena que esvoaça delicadamente sobre as nuvens esbranquiçadas e que abraçam as vacas que ruminam na eternidade; o vento se insinua levantando as saias – que força! exclama a velha dona Alice, que estende a roupa no varal; nossos olhos se abrem e assim a Natureza nos afaga – francamente, a vida parece existir somente quando a encaramos – e se morrermos, a vida será uma mentira.

Mas agora Orlando se traíra demais – observava um pé de laranja se esclarecendo cada vez mais que o sol avançava e ele teve a nítida impressão que a árvore murmurava – assim ele se permitiu se sentir um pouco idiota ; - falamos de árvores, de sombras e névoas – um cão ladra incansavelmente – mas tudo isso é inútil. Tudo existe de si para si – nada escapa à solidão; ah! mas é que tudo parecia espuma flutuando... Orlando, que se parecia uma onda; Orlando, que se parecia um caracol se dourando enroladamente nos primeiros raios do alvorecer;

um homem não deve se submeter às suas paixões – assim Orlando se voltou para janela, cada vez mais consciente de si, ficando cada vez mais vigilante, atento aos móveis que estalavam ao seu redor, levando a mão ao peito, sentindo que um vento morno inflava as cortinas da janela; o tempo avançava, as vacas mugiam e a roupa secava no varal; devemos dizer, sem romantismo, que Orlando aos pouco deixava-se abstrair por uma onda que atravessava seu corpo e o arremessava para outro plano – sentia-se prestes a se rasgar como um papel – assim como devemos ser francos ao assumir que o homem parece um imbecil quando deixa-se escravizar pelo mistério; sim, devemos dizer que é o mistério que nos submete à humilhação e que nos inquieta diante de uma janela enquanto ficamos apenas observando a vida permanecer extática diante de nossos olhos; nós nos obrigamos a nos empurrar para darmos pequenos passos, ainda mais quando tudo parece inconquistável e quando o mistério se desdobra cada vez mais em gestos imprecisos; às vezes, porém, tudo pode ficar mais suportável quando dona Alice traz um bolo com chá; ou quando se abre um livro e nos deixamos surpreender por algumas palavras bem escritas; Orlando, que se parecia com uma onda – e que agora naufragava carregando consigo palavras jamais pronunciadas, mas que ele conhecia de cor... quem diria que um jovem como Orlando poderia fenecer em plena luz do dia? oh!, que Deus o perdoe dos seus enganos, Orlando fumava, mas ainda era um broto! Orlando, com o nome curvo e redondo rolando num papel em branco, meu Deus, Orlando é um esboço, algo inacabado; Orlando se deita como uma sombra – porém, suspeita-se que tudo isso seja perda de tempo e não queremos irritar nosso leitor de impaciência; mas o que se deve dizer de um homem que cede a primeira tentação do dia? que não se deixe enganar, caro leitor, mas a Natureza é um embuste e uma montanha pode ser uma promessa arrojada de um amor infértil; o que parecia necessário, no entanto, era desertar – um barco que escorrega ao longe, lá no horizonte, pressente-se um ponto final na incansável busca... – no entanto, deve-se perguntar: o que se busca afinal? um marinheiro já sabe que a terra é redonda... busca-se talvez por novas terras, por civilizações selvagens, por tesouros... ainda assim, haverá a insatisfação, ainda haverá aquele buraco imenso e vazio que nos afasta cada vez mais dos nossos sonhos; porém, Orlando permanece inalterado como uma estátua; aproxime-se, caro leitor, e então acharás que o nosso amigo estará sem vida; no entanto, suspeita-se de que aja uma vida tão intensa dentro de si que, se pudesse extravasá-la de alguma forma, toda a raça humana seria dizimada por seu terrível impacto; diante de tudo isso, nos espantamos de tal maneira que chegamos a nos convencer de que tudo isso não se passa de um exagero; podemos apontar o calor como sendo a causa desses delírios, mas é impossível determinar com clareza. Mas é claro, não devemos supor que tudo estivesse mais claro do que um sol tampado por nuvens; mas, como foi dito, a Natureza é uma mentira, não devemos confiar inteiramente na realidade que ela nos entrega; no entanto, consistimos da mesma matéria insossa dessa Natureza falaciosa que nos entrega de mão cheia as suas paixões; somos apenas as suas paixões; somos apenas crianças à mercê de nossa curiosidade e inocência; nossa naturalidade nos permite que deixemos nos entregar as coisas um pouco às cegas, mas não importa, nossa ingenuidade também é uma forma de amar; amor se desdobra em inúmeras faces e sempre nos assustamos com sua brutalidade; oh, meu filho, mas que não se espante, pois a vida é assim mesmo! esta inabilidade de empunhar nossa própria espada, esta hesitação de ir adiante; o que nós deveremos fazer? há aquelas que se despem diante do Nada e diante do Nada diz: “Sou Teu”; uma cruz se eleva e o que se é passa a não ser mais; cabeças se levantam e olhos apenas assistem um corpo sendo estilhaçado ferozmente sobre esta luz parca que recobre nossa consciência e que nos apavora; mas, esse silêncio, nos unimos ao mesmo ritual; em silêncio, nós compactuamos do mesmo sacrifício;

foi assim que, um dia, provido de uma inspiração calorosa, Orlando esqueceu seu passado, entregou-se ao futuro – mas o presente lhe aquiesceu – e assim passou a se chamar Orlando – pois ainda era preciso que o reconhecesse por um nome – talvez esse nome fosse um pouco pomposo para alguém que sofre de asma; porém, ele era bem consciente de que não se transformaria em mulher de um dia para o outro, o que lhe deixava bem feliz e tranquilo; (... mas os fatos são como pedras esparsas num imenso deserto; se juntássemos todas essas pedras e com elas formássemos um círculo coeso e concêntricos, poderíamos ter a sensação palpável da realidade; mas o Tempo é um senhor imperdoável em seu orgulho; em sua ira, ele lança as pedras aos brejos e tudo rola rola rola pela eternidade...); o que é curioso notar é que Orlando parecia ter duas faces o que lhe conferia, obviamente, uma dualidade, porém claramente masculina e feminina (e aqui, caro leitor, devemos esquecer de Virgínai Woolf...), pois ora ele era frio e orgulhoso, como quem avança com uma espada com a ânsia de quem tem sede de sangue, ora ele parecia fértil em sua delicadeza, sensível como um ovo – fosse o que fosse, era preciso que o carregassem constantemente e, dessa forma, o abraçassem e lhe dessem um pouco de cafuné; era assim que estava sujeito ao fracasso – “um homem não deve se entregar às suas paixões” – ah! e como dona Alice ria do pobre rapaz, incapaz até mesmo de matar uma mosca – covarde! covarde! covarde! – que se sujeitava ao amor de forma tão ingênua; ah! mas o amor...

... esse longo túnel de sombras – Orlando se abstraía na janela – essa longa travessia onde vozes ecoam numa polifonia fantasmagórica; essas vozes encarceradas no balaio do Tempo, esperando que a estação certa os amadureçam e que assim nasçam para a eternidade; aguardam que a chuva venha para os amansar da impaciência da vida; mas não é assim, o Tempo é implacável, algumas sementes perecem no caminho, Orlando se estilhaça, fica a farrapos, mas aos poucos vai juntando o que lhe resta, projeta-se para outras veredas – uma senhora lhe diz: “é assim mesmo, meu filho” e, quando ela sorri, Orlando se horroriza com aqueles dentes podres – “sim, sim, sim, pois é assim mesmo!” – esse grito que se dá no esgar da dor de dente – essa língua morna e mole que se move debilmente – ou tudo seria aceitável, tudo seria como atirar pedras ao mar – vê-se uma sombra se afundando pelas profundezas – balões que se ascendem ao toque de uma mão pequena e macia – ou quando uns olhos se esbarram aos nossos e as ondas se esparramam em cascatas; Orlando, que se esvai no silêncio, enquanto que do outro lado alguém carrega as malas; por piedade esse alguém observa Orlando de dobrando na superfície do mar – o que é preciso dizer? Fazer? – por piedade é que esse alguém se mantém na ignorância, torna-se indiferente e pega o primeiro táxi que se vê; e assim, como um círculo vicioso, novas sementes são deixadas ao acaso até que se caminha muito; acelera-se o passo, vai se aproximando do horizonte, e aquelas sementes repousam sobre o esquecimento, sobre a indiferença – esquecer é um estado da eternidade – dona Alice rindo às gargalhadas: “Seja homem!” e então recebe um tabefe na cara; por quê tudo isso meu Deus? pergunta-se porque no fundo de tudo ele sabe que as coisas estão sendo visivelmente claras, mas que o seu gesto é de covardia... covardia? – pois o que é que se deve amar afinal? – pergunta errada, diz dona Alice; o quê? o quê? o quê? – insiste Orlando; o tempo se enferruja dentro de você; como podemos amar aquilo que não se ama? – que as janelas se abram pois preciso de inundações! Que minhas águas se desaguem para o mar – o mar que encolhe numa gruta! – as laranjeiras, as macieiras, os limoeiros, os abacateiros, as ameixeiras – essas explodem em exuberância – deixo que eu me encerre dentro de meu corpo – que os pássaros, de quando em quando, venham fazer uma canção; as engrenagens do grande relógio avançam trepidando, estalando; um leve rumor agita o silêncio e um grande pássaro de pelugem branca alça voo e mergulha no horizonte; as ondas vibram no seu refluxo constante; o dia recua com fraqueza; como o mar parecesse se apagar... assim como a velha, Orlando não sabe amar! Orlando, Orlando que se joga no mar... que deixa o ar faltar... Orlando, que se parece uma onda...

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