quinta-feira, 28 de janeiro de 2010
Dona Alice
Assim como a manhã que nasce, eu não sei do meu dia. Quantas horas ainda me restam? E eu já me perco no labirinto do tempo.
quarta-feira, 27 de janeiro de 2010
Segunda Carta a Joaquim
5 de Fevereiro.
Caro Joaquim:
Ah que bom que você compreende essa chuva que caí ao avesso. Essa chuva de gotas fatais que se lançam brutalmente e que me ferem com sofreguidão! E eu pergunto Joaquim, eu pergunto: de onde vem essa chuva? Por que tão leve e imprecisa? Então acho que já posso largar a tua mão: você me entende – e por isso também me aceita. Como nos velhos tempos! – Mas quanto eu ser infeliz, eu já te disse que é uma outra espécie de felicidade a minha que eu não sei dizer. Procurei o significado do que sinto em tudo que esteve em meu alcance, mas nada. Eu sou tão feliz como se todos os dias fosse primavera. E em dia de primavera eu também abro minha janela, sinto toda vida em respiração profunda em alegria áspera de um sopro. Esse sopro de vida que fecunda até mesmo o mais rijo coração de um homem que pára diante de si próprio e se cala pela própria grandeza de vida, e então logo desiste... da própria vida. Pois sim: em dia de primavera eu também me dou ao luxo de ir ao riozinho próximo de minha casa e com a mesma cobiça de uma criança entregue ao mundo, eu apenas contemplo em silêncio leve de cristal o murmurar ofegante de tal riozinho, onde os peixes tão pequeninos repousam. E é também em dias de primavera que, ao vento do anoitecer, eu abro meus braços em receptividade à vida. Sei que olhares fugazes me olham por de canto, mas não tenho o pudor de ir apenas vivendo ao meu modo. Quem nunca um dia teve o profundo desejo de gritar ao alto da colina? Aceitar a vida de braços abertos é a minha vingança ao grito que eu também desejei e nunca pude gritar. Sei: não posso aceitar a vida plenamente pelo apelo desesperado de quem quer sempre mais do que a vida (é que talvez no fundo de meu íntimo, o meu desejo quase implorante é de morte. Mas é que a morte é um ritual: uma iniciação a uma nova vida.). Mas o que me resta como o primeiro e único consolo é saber que se está vivendo, de algum modo ou de outro. E que é na própria liberdade da vida é que se pode viver sem ter o Medo – o medo de tocar no âmago, de tocar no escuro ou de apenas florescer nas tardes de verão. O meu próprio modo de vida é ir apenas vivendo. Como um sonâmbulo que apenas vai e vai...
Ah sim: também não posso esquecer que é nos dias de primavera que, quando abro a janela e sinto essa respiração suave que é a vida, posso sentir também a brisa densa mas fresca que tem aquele profundo segredo inatingível e que somente uma palavra pode lhe dar a sensação ou a lembrança do estigma desse segredo: felicidade.
Felicidade é o segredo mais inflexível da vida.
Lembra a ruído de segundos e segundos passando em lentidão de quem espera...
A vida é uma espera.
Entende?
P.S.: Por que não respondeu a minha pergunta se és feliz? Tem medo da definição!? Saiba: eu também tenho. Por isso eu não defino o que sinto ou aquilo que eu não sei, eu só dou pistas ou crio esboços – vagas possibilidades. O que eu preciso saber está bem fundo dentro de mim.
Aguardo uma resposta!
Primeira Carta a Joaquim
(Assim. Assim. Bem: 30 de Janeiro).
Meu grande amigo Joaquim:
Há quanto tempo não nos vemos hein? Por que não apareceu mais? Tem mesmo até fugido dos meus pensamentos – só agora – nesse momento em que escrevo – te resgato lá do fundo de mim mesmo. (Sim, lá daquele fundo bem fino que é o da imaginação. Respiro profundamente: é a minha inspiração, Joaquim!). Pois bem, pois bem. Mas agora, colocando os meus pensamentos em ordem, crio teu corpo, teus braços, teu rosto. Mas por que essa barba tão longa hein, Joaquim? Assim, quero te pontuar
Bem Joaquim, já que há tempos que não me escreve – e nem eu te escrevo – então é hora de colocarmos a conversa
Choveu agora há pouco. Horário de verão, é quase oito da noite. E olha que lindo: o sol se pondo! As nuvens tão grossas encimando o ar, mas o sol... e tudo está coberto pelo tênue esgarçar laranja do pôr do sol. Pois é meu caro Joaquim, e eu aqui inquieto. Agora, o arco-íris. Se quiser, pode rir de mim. Eu não ligo, mas eu quero isso: eu quero o segredo do fim do arco-íris desmanchando-se em lágrimas das sete cores para que eu pinte um quadro tão real que ninguém acreditará vendo com esses olhos tão humanos. Será preciso sonhar para vê-lo. Não ria. Assim como agora onde em mim eu sinto as vibrações de cores fortes. Quero pintar em palavras a cor do vermelho misturando-se ao roxo num grito de desespero como um animal se debatendo
Joaquim. Eu sei, nesse momento em que te escrevo eu estou um pouco triste – as minhas lágrimas se escondem atrás de minhas pálpebras. E eu não tenho medo e digo: eu sou feliz! (não ria.) Mas eu sei que essa minha alegria é daquela que dói quase que
Então por enquanto é isso Joaquim. Não tenho mais nada a dizer. Escrever agora foi tão bom! Sinto um alívio de um sopro. Me senti vivo. E sei que não pararei por aqui. Há tanta coisa que eu não entendo e que preciso compartilhar com alguém. Mesmo que de modo incompreensível. Mas é que as coisas são assim mesmo. Escrever agora tão subitamente teve o valor e o encanto de um mistério enevoado
Aguardo notícias suas com o coração impaciente viu Joaquim?
Um grande abraço, ao tamanho de meu amor e saudades por ti!
Meu querido,
Ele fixara seus olhos que esgazeavam no espaço vazio da eternidade em momentos nus escorrendo pelo relógio sibilante como o vento correndo pela campina. Passos delicados soando entre o céu impetuosamente esmaecido e, no entanto eu o via em seu mais absoluto silêncio dentro de um próprio silêncio cru que pingos prateados dos segundos tombavam vagarosamente entre um instante e outro. Era o estado mais profundo da realidade em que podia se encontrar, talvez. Porém, eu o olhava atento, como se nele houvesse a verdade escondida atrás de suas expressões faciais sérias, naqueles olhos levemente amendoados estrábicos oblíquos que se dissolviam através de um centro sólido e invisível – ai meu Pai! – e eu devo dizer o quê afinal?
Levantei meu olhar timidamente, escondendo a minha ousadia de ter a coragem de ao menos imagina-lo – deduzi-lo: em que pensa afinal? – e também de vigiá-lo em seu momento próprio – a testa enrugada, os olhos castanhamente vazios, ai de mim meu Pai! De través, olhei-o. Ah eu que preciso tanto de você, por favor, não me abandone. Ah eu tão frágil que sou que preciso urgentemente de sua mão agora, por favor, não me abandone nunca... – e com uma das mãos, ele brincava com a caneta. O rosto pálido, a boca seca. O coração palpitando ferozmente, quase-quase sempre no limiar, a porta da saída aberta na escuridão e ele quase-quase, meu Deus! Dá-me a tua mão porque preciso dela. No que pensa afinal? Talvez na noite de estrelas pálidas alinhando-se no gélido céu noturno. Em horas simplesmente vagas. Por que tão inconquistável como a bandeira no alto de um mastro? Ai meu Deus, que ele nunca me abandone...
No final, com as minhas mãos eu seguro a tua. Olho fixamente naqueles olhos nus e cansados, pálidos e aflitos. Que espécie de alegria era aquela?
Fui embora pensando em céu e terra. Noite e estrelas.
A vaguidão de Deus.
Tendo pois tal esperança, usamos de
Muita ousadia no falar. – II Cor. 3:12.
No princípio era o verbo. Era a palavra de Deus – e Deus era todo o mundo e, também a palavra. A carne faminta. E da carne, o ser. O humano. Porém, antes do verbo, o átomo. E depois, mais e mais átomos unindo-se até surgir então uma molécula. E dessa molécula, toda a pré-história de uma história. E dessa história se seguiria uma grande música estonteante e de uma bravura que há tudo isso até hoje os homens temem. Castelos edificados – grandes muralhas construídas através dos séculos. Mas os homens ficaram, em sua maioria, do lado de fora, apenas contemplando aquilo que eles edificaram.
Mas afinal, o que eu quero dizer a tudo isso?
Que os homens são tolos diante de sua própria grandeza. Assombram-se facilmente por aquilo que fazem e por isso mesmo tornam-se arrogantes. Mas ainda, mesmo que seja para alguns, há aquele fiapo maltrapilhado a que eu chamo de esperança. Creio que a esperança seja o verbo de Deus. E talvez seja a pré-história do amor. Esperança é aquilo que nasceu na grande explosão e que impulsionou a calha do tempo. Sim: a esperança.
Creio nessa esperança úmida e verde que nasce no coração humano e que se desprende, muitas vezes, na derrota. Mas ainda assim: esperança é um estigma cravado na pele.
Imaginariamente vou cosendo em pontos cegos pequenos fragmentos de memórias e inspiração nascidas não-se-sabe-de-onde. Do ar, talvez. Ou não. Mas afinal, por trás de meus sonhos e desejos sempre há a esperança.
Basta acreditar nela. Esperança é um sopro de vida.
Esperança é minha maneira de aceitar a vida.
A crônica da última hora I
A VIAGEM
Dez horas. De manhã. A Estação movimentada. O trem dera o primeiro sinal anunciando que em breve iria partir. Antes de embarcar, porém, olhou ao redor. Viu algumas pessoas se despedindo uma das outras. Tristes. Felizes. E ele, de quem iria se despedir? “Adeus”, queria dizer para as coisas que o rodeavam, mas não podia. As coisas eram incomunicáveis. “Adeus”, tentou insistente. Esperou inutilmente – não houve resposta. Deu o último trago no cigarro e logo o jogou ao chão. Amassou-o com a ponta do pé. Mais uma vez o trem apitara – finalmente pegou as malas e embarcou.
Ajeitou-se no assento da cabine e, num suspiro de meia satisfação, encostou a testa no vidro da janela e pôs-se a contemplar deliberadamente a paisagem. As montanhas ora se erguiam agudas e estúpidas ora se desmanchavam num campo cerrado e úmido. As casinhas distantes passavam rápidas, enquanto o trem trepidava insistente. Assim como seus pensamentos, vacilando de repente na incerteza, no medo. No passado. Como num livro envelhecido onde as palavras já estão quase apagadas. Nunca mais!, pensou. Nunca mais voltar... eu fujo. Fechou os olhos. Eu fujo...
Acendeu um cigarro. Não queria pensar em mais nada. Os campos distantes onde as árvores fremiam solitárias; o vento frio arrastando o tempo. O silêncio agitando-se nos trilhos por onde o trem passava. Os ferros retorcidos. A fumaça preta tomando rumo contrário ao caminho seguido. Seria a impressão? A lembrança? Pois de algum vagão fazia música. Uma música de harmonia eriçada, sombria e vagarosa, em pequenas sucessões a pianíssimo. É Bach. De repente eu me apago, o palco fica escuro e vazio, as cortinas se fecham. Fico misterioso – escuto Bach e agora sou o próprio mistério. Enquanto vou fugindo com mágoa, sem ter a certeza da direção certa... deu às últimas tragadas no cigarro.
Apoiou as mãos no colo. Olhou o céu e percebeu que chovia. O vidro embaçava-se de um vapor transparente, gelado. A paisagem do lado de fora ofuscou-se, apenas um borrão cinza pincelado com brusquidão pelo trem
Mas por que me deixaste assim? refletia. Pois me deixastes desamparado, com uma faca atravessada no peito. Eu, que fazia da tua imagem à minha semelhança; do teu sorrio eu fazia a minha felicidade; os teus olhos turvos mas sem lágrimas... e os meus? e agora? Já não há mais sorriso nem dor. No vazio ficou a ausência. Sou uma lacuna em face da verdade. E minha verdade máxima era a vida. Era a tua vida. Olhávamo-nos como cegos; endurecidos. Até que desabrochávamos e nos uníamos em comunhão perfeita. Compreendíamo-nos. Uma palavra tua e as coisas faziam sentido.
Lembro-me de ti em teus momentos sérios, de perplexidade violenta. Teus olhos enviesavam-se esgazeados, irrefletidos. Tua meditação era secreta, profunda. Até que se aproximava com lentidão, como um cachorro abanando o rabo, e tuas palavras saíam sufocadas de um grito desesperado. Mas é que teus olhos fugiam dos meus. Pois eu também temia-os e com a coragem de quem ama é que eu te encarava e finalmente tirávamos nossas máscaras, fadados de nossos disfarces. E na nossa crueza, reconhecíamo-nos.
Mas é que por instantes teus olhos pressentiam minha angústia maior que é a de quem possui mas não sabe o que fazer com aquilo que se tem. Eu, por não saber o que fazer do meu amor e felicidade, entristecia-me friamente. O desânimo mortificava-me. E no teu amparo, eu me confortava. Eu era, pois. E havia aleluia
Lentamente o trem estacionou na plataforma da Estação. Desceu sem amparo, com uma ferida no peito. Uma leve tontura o abateu. A solidão. O frio enlevando o corpo. O que iria fazer de si? Não sabia. De longe, no alto de um muro, viu um gato preto que, num pulo macio, saltou até o chão molhado. Lambeu as patas. E foi embora. A ele também faltava dar “o pulo”. Atravessar o abismo. E com a cabeça erguida, atravessar a escuridão. Mas à noite, porém, apagaria num sopro a flama do passado.
ENTÃO, ADEUS!
Seus ombros esbarraram-se entre a multidão que se encontrava aglomerada. E num relance de olhar eles se reconheceram, eles que há tempos encontravam-se perdidos, tempos antigos que revitalizou a lembrança já perdida numa carícia quente. E ali, no meio daquelas pessoas tão distantes à realidade olharam-se fixamente, com um brilho sem espanto e sem glória, límpido, brilhantes como um farol a acenar cheio de saudades e mágoas. A primeiro momento, a moça jogou-se aos seus braços num forte abraço, esquecida de que entre eles havia um passado agora materializado em vagas lembranças, como de sonhos recortados em vitral pelas luzes e sombras da imaginação. Ela pôde sentir a mão grossa do homem afagar-lhe seus cabelos, passando suavemente seus dedos frios pela nuca com doçura. A ele, a dor de revê-la tão subitamente após anos era como se uma faca encostada em seu coração estivesse prestes a cortar-lhe friamente. Até que pressentiu que naquele momento havia uma ameaça de perigo eminente. No cruzamento, os carros que buzinavam paravam. O mundo ao redor congelava-se, virava às avessas, tudo desbotando em cinzas, um silêncio pressentido insuflando-se nos ruído dos passos. O tempo decorria serenamente. Até que de repente de dentro da moça alguma coisa agitou-se bruscamente, saiu do conforto dos braços do homem e novamente se encaravam. Porém, já não havia aquela paz tranqüila e transparente, feito de uma planície sem ventos, onde do céu as nuvens brancas eram como bandeiras imobilizadas no mastro. Nela já não havia a qualidade cristalina anterior no qual se podiam ver seus seixos transparentes. Dois olhos debatendo-se com outro dois olhos – a imperfeita paz. A respiração da moça parara com um grito lancinante. Lembrou-se do passado – como pegar um caderno antigo, as letras miúdas esparramadas em cada linha em tinta preta, páginas borradas pelo tempo, condenadas a uma sentença perigosa. Cada vez mais um nó difícil desatava, uma corda que prendia ambos às suas dores e solidão. Ela fechou os olhos para buscar o amparo que ele já não oferecia. Eles eram águas fluídas de um mesmo leito, caminhos já prontos numa mesma direção, a essência de ambos atraídos como duas metades perfeitas ao mesmo pólo inteiriço, uniforme. Não sabia que era apenas um esboço mal-traçado. Mas havia o perigo de tocar no passado, então ela abriu os olhos cheios de lágrimas. E a ele só restava aquele brusco desassossego que se transformava lentamente numa agonia – tinhas duas mãos e mesmo assim era incapaz de atravessar a noite. Tinha uma boca, mas de seus lábios era impossível dizer palavras brilhantes. “Melhor assim” pensou. Mas os olhos da moça gritavam desesperadamente